domingo, 25 de agosto de 2024

BELEZA E TRISTEZA

 BELEZA E TRISTEZA. O romance “Beleza e Tristeza”, do autor japonês Yasunari Kawabata, publicado 1965 é um drama poético. O modo como são narrados os fatos é tão envolvente e delicado que atrai ao leitor numa espécie de labirinto que inclui descrições pictóricas, vingança e cenas de lasciva. É um tipo de prosa, ao mesmo tempo, lenta e vertiginosa, que arrasta ao leitor. A forma narrativa de Kawabata pinta paisagens, emoções e lembranças com delicadeza no caminho do conceito de “wabi” (simplicidade). A prosa de Kawabata é de uma beleza austera. Cada palavra é cuidadosamente selecionada num ritmo pausado que nos permite saborear cada momento com muita precisão como se fosse um longo “Haiku” (poema substancial). A técnica narrativa, sutil e invocadora, deixa que a trama seja serena, mesmo incluindo cenas eróticas ou dolorosas. A TRAMA Oki Toshio, um escritor de meia-idade, viaja desde Tóquio a Kyoto para escutar no réveillon as 108 badaladas do sino. Cerimônia que ele sempre ouvia pelo rádio. Isso serve como pretexto para compartilhar esse momento com Ueno Otoko com quem teve uma relação muitos anos antes, quando ela era adolescente e ele, um jovem casado nove anos maior que ela. A trama se desdobra no passado e no presente. Oki, inspirado nessa relação, escreveu um livro chamado “uma garota de dezesseis anos” que o tornou famoso.  Otoko, sofreu muito pela separação, mas conseguiu levar sua vida em frente se dedicando à pintura. Ela convive com una discípula, (amante), a belíssima Keiko. Oki e casado com Fumiko e tem dois filhos: Taichiro e Kumiko. A bela Keiko para se vingar do sofrimento passado por Otoko seduz a Oki e a seu filho Taichiro numa confabulação perversa que termina de forma trágica. REFLEXÕES SOBRE O TEMPO. Kawabata no livro “O mestre de Go” conta a história de um confronto derradeiro entre um mestre de Go e um jogador ascendente que ocuparia seu lugar. Os jogos do tempo entre o passado representado pelo velho mestre e o futuro simbolizado pelo rival são visíveis ao longo da narrativa. Kawabata no livro “A Dançarina de Izu” também se refere à brevidade e a beleza do tempo. Nas 60 paginas o autor nos revela impressões da natureza, do amor fugaz e do efêmero dos sentimentos juvenis. Aqui, no romance “Beleza e tristeza”, o autor se refere a um passado que orienta o presente na forma de amor ou de perda. Também ele reflete diferenciando um tempo cronológico sendo o mesmo para todos, mas cogita como esse tempo é vivido de forma diferente em cada pessoa. Aqui um trecho onde ele descreve esse tema: “O tempo passou. Mas o tempo está dividido em muitos fluxos. Como num rio, existe uma corrente central rápida em alguns setores e lenta, até mesmo imóvel, em outros. O tempo cósmico é o mesmo para todos, mas o tempo humano difere para cada pessoa. O tempo corre da mesma maneira para todos os seres humanos; mas cada ser humano flutua no tempo de uma maneira diferente. […] As correntes do tempo nunca são as mesmas para duas pessoas, nem mesmo quando são amantes”. A PINTURA NA VIDA DE KAWABATA. Kawabata além de ser escritor era colecionador de arte. Ao longo da sua vida teve encontros marcantes com objetos de arte que podem ter desencadeado sua inspiração literária para assumir uma prosa nitidamente oriental. A pesquisadora Taniguchi Sachiyo comenta em um artigo intitulado “As ressonâncias da arte antiga japonesa nas obras de Kawabata Yasunari” que, um desses momentos ocorreu quando Kawabata conheceu a obra “Tōun shisetsu-zu”, de Urakami Gyokudō. Depois quando se deparou com o biombo de seis folhas “Kiku-zu byōbu” ou “Tela de Crisântemo”, de Ōgata Kōrin, obra monumental em seis painéis que representa crisântemos brancos sobre fundo folheado a ouro onde é utilizado o pigmento denominado gofun, feito a partir de carbonato de cálcio extraído de conchas e outros materiais. Não parece exagero dizer que o encontro com a arte antiga abriu um novo horizonte literário para Kawabata. Ele tinha uma grande atração pela escola pictórica Rimpa. Kawabata fala em um de seus livros sobre a nostalgia que sentiu em terra estranha ao se deparar com a beleza japonesa condensada nas obras de Ogata Kenzan (1663–1743). A predileção pelas imagens aparece ao longo da obra do autor, a descrição das cores no livro “A dançarina de Izu” ganha uma importância especial, Kawabata similar a um pintor fala de “pentes com cor de pêssego” e de “arvores amareladas”; ou nos apresenta  imagens sonoras e visuais como: ”as vozes das mulheres pareciam trovões atravessando o céu azul”. Aqui, no romance “Beleza e Tristeza”, como duas das protagonistas são pintoras, o tema das artes plásticas se desenvolve muito mais abertamente. Nas descrições de Kawabata parece que estivesse “pintando com palavras”. Ele delineia detalhadamente as estampas dos quimonos, os lenços, as paisagens de Kyoto, os bosques, os jardins de pedras... Kawabata cita os ocidentais: Rodin, Chagal, Odilon Redon. Também o autor cita uma série de obras tradicionais feitas em pergaminhos que o impressionaram muito, na sua vida real. Por últimos cita e os japoneses: Nakamura Tsune (1889-1924), no quadro "A mãe", Kobayashi Kokei (1883-1957) em quadros onde o artista retrata penteados femininos. Estas alusões põem de manifesto o profundo interesse que sentia Kawabata na direção das ressonâncias mutuas perceptíveis nas profundidades das obras literárias e artísticas. A PINTURA E O TEMPO NO ROMANCE. Otoko quando estava namorando Oki tinha dezesseis anos. Ficou grávida de Oki, mas sua filha morreu no parto, esse acontecimento acabou precipitando a separação. O episódio, na época, quase enlouqueceu ela ao ponto deste fato se perpetuar na sua memória na forma de um trauma. Num momento ela deseja pintar a imagem de um bebê subindo ao céu. Otoko batiza o quadro de “Ascensão do Infante e a Santa Virgem”. Esse quadro incluiria na virgem o retrato da sua mãe e do que ela imaginava como o rosto de sua filha prematura. O quadro simbolizaria o amor dela pela criança, pela sua mãe, por Oki e também ele representaria todos os anos que seguiram de sobrevivência e de melancolia. HISTÓRIAS PARALELAS. A ideia de incluir histórias paralelas ou uma narração menor (um conto) numa narração maior (o romance) é um recurso muito usado dentro da literatura. Num momento do Romance um dos personagens narra um fato que aconteceu ao abrir a sepultura da princesa Chikako, também conhecida como Kazu-no-miya (1646/1877). Ela era uma aristocrata dedicada à poesia e à caligrafia. Esta narração aparece como se estivesse publicada boletim de um museu num artigo intitulado “Beleza Fugaz”. Dentro da sepultura encontram o esqueleto da princesa e um retângulo de vidro com uma imagem (uma fotografia sobre vidro) a imagem dessa foto não se deixa ver com clareza, mas observada por um especialista ela expõe uma figura masculina. A imagem se desfaz em contato com o ar e fica no texto a incógnita sobre a identidade desse homem no retrato. Seguramente seria de seu marido o Shogun Iemoshi ou de um admirador dela, o príncipe Arisugawa. O artigo diz que estamos frentes ”à história de uma vida verdadeiramente efêmera”. A personagem sugere criar uma obra sobre a imagem de um misterioso segredo que se desfaz, da noite à manhã, assim que é retirada da sepultura. O simbolismo da imagem se desvanecendo traz uma reflexão poética sobre a brevidade do tempo que permeia o romance inteiro. FINAL. O romance além do relato em si, traz o encontro com reflexões sobre o tempo e nos aproxima de  um universo de excelência que nos introduz na valorização da arte oriental. O livro é uma joia da literatura universal.