quarta-feira, 9 de março de 2016

Ciortazar e os cronopios

“Historias de Cronopios y de Famas”.


Com este título Julio Cortazar publica em 1962 uma serie de relatos diferentes, curtos, de característica anárquica, autônomos, breves, sem continuidade, mas com algo surreal que os permeia.
Trata-se de uma recopilação de sessenta e quatro  textos divididos em quatro partes e um prólogo: No prólogo duas paginas primorosas escritas em um estilo poético, destaco os trechos: ...“E não que esteja mal se as coisas nos encontram outra vez  cada dia e são as mesmas. Que ao nosso lado esteja a mesma mulher, o mesmo relógio, e que a novela aberta sobre a mesa  convide a dar um passeio outra vez á bicicleta de nossos óculos”….
 ...“Quando abra a porta e olhe da escada, saberei que embaixo começa a rua e; não o molde já aceito, não as casas já sabidas, não o hotel de enfrente; a rua, a viva floresta onde cada instante pode se jogar sobre mim como una magnólia, onde as caras vão nascer quando as olhe, quando avance um pouco mais, quando com os cotovelos e os cílios e as unhas me rompam minuciosamente contra a pasta do tijolo de cristal, e me jogue na vida em quanto avanço passo a passo para ir a comprar o jornal na esquina.”
Um prólogo que nos introduz, nos ambienta no que é propriamente o livro... A partir de este convite temos os relatos: primeiro o ”Manual de Instruções”, onde se reúnem uma serie de textos que envolvem imagens humorísticas, pensamento; muitos deles estão escritos de forma lúdica onde se descrevem de modo didático, diferentes tipos de ensinos: instruções para chorar, para ter medo, para dar corda a um relógio ou preâmbulo às instruções para dar corda a um relógio.
Destaco alguns trechos deste último: “Pensa nisto: quando te dão de presente um relógio te oferecem um pequeno inferno florido, uma corrente de rosas, uma prisão de ar... Te apresentam um pedaço frágil e precário de você mesmo, algo teu mas que não é teu corpo, que tem que atar ao teu corpo com sua corrente como um bracinho desesperado pendurando-se  do teu pulso. Te dão a necessidade de  lê dar corda, o medo perde-lo. Não te oferecem de presente um relógio você é o presente para ele”.


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O segundo grupo de relatos se intitula: “Ocupações raras”, começa com o relato “simulacros”  nele podemos ler: “ Somos uma família estranha. Em este pais onde as coisas se fazem por obrigação ou fanfarronaria”.
Os relatos falam sobre procedimentos sociais (como se comportar em um velório), conselhos sobre a recuperação capilar...
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A terceira parte se chama “Material plástico”,  reúne breves relatos relacionados com o mundo laboral  e atividades  absurdas, como de cortar una pata a uma aranha para enviá-la ao Ministro de Relaciones Exteriores , ou como o caso mágico de um espelho situado na iIha de Páscoa, que, atrasa ou adianta no tempo  a imagem de quem em ele se reflexa.
De esta  seção do livro vou me deter em três textos que me impressionaram:
Tema para una tapeçaria.

Um general tem só oitenta homes e o inimigo cinco mil. Ele escreve uma proclama e duzentos infantes se passam ao general. Segue uma escaramuça que o general ganha facilmente, e dos regimentos se passam ao seu bando. Três dias depois o inimigo tem só oitenta homes e o  general cinco mil. Então o general escreve outra proclama, e setenta e nove homes se passam ao seu bando. Só fica um inimigo, rodeado pelo exército do general que espera em silencio.. Ao alba o inimigo tira lentamente sua  espada e avança até à  tenda do general. Entra e o olha. O exercito do general se debanda. Sai o sol.
 Aqui o jogo do desmanche de um exercito que se passa de bando e a imagem de um general que com a força  única da sua presença neutraliza o poder numérico, metáforas sobre a lealdade, imagens para serem contadas em um tapume, mitos de guerreiros, desafios, ações que envolvem coragem, temores e desafios.

 Contos sem moral.
Uma narração completamente genial, absurda, típica do mundo de sonhos das “mil e uma noites” na qual um homem vende gritos e palavras; vendia pregões para ambulantes e palavras para as pessoas do povo  até que teve a iniciativa de oferecer para uma autoridade as últimas palavras , o tirano o colocou na cadeia , o vendedor se lamentou argumentando que ele as precisaria para configurar seu destino histórico retrospectivo.
O tirano comprou as ultimas palavras em quanto sofre uma rebelião de seus secretários e oficiais, o matam de um tiro antes de poder dizer as palavras, procuram ao vendedor para conhecer qual seria a última palavra que falaria o tirano, mas como este não quer rebelar-la o matam a pontapés.
As ultimas palavras se tornam conhecidas e serviram como contra senha para que o povo possa se comunicar e derrocar aos que tinham usurpado o poder.O relato termina com a frase: os gritos ressoaram nas esquinas
 Uma situação absurda que desencadeia uma luta pelo poder, curiosa é a idéia de que alguém queira vender algo como “as ultimas palavras” e raros são os argumentos que usa o homem para convencer ao tirano a comprar-las, ele fala que o que ia a vender era o que ele próprio iria falar, mas que pelo medo e as circunstancias do momento não conseguiria pronunciar. Metáfora de uma espécie de cabala, de dizer sagrado que carrega a idéia do fim e da liberdade.
A línea das mãos.
 Uma línea imaginaria percorre objetos dispares e termina em uma mão que empunha uma arma.
 Cortazar costura com imagens  visuais uma linha  fazendo nossa fantasia voar por associações e caminhos borgeanos...enumera sucessões sem um elo aparente e nos convida a participar de seu percurso imaginário.
“ De uma carta jogada na mesa sae uma linha que corre pela prancha de pino e desce pelo pé da mesa....”.

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Historias de cronopios y de famas
Na  última parte do libro encontramos as  Historias de Cronopios e de Famas,  Aqui, Cortázar nos apresenta a t
rês tipos de personagens: os Cronopios (seres lúdicos e criativos) , os Famas (os formais, moralistas)y os Esperanças (seres oscilantes).
Cortazar conta como nascem os cronopios: “Eu estava em París em 1952 e fui a um concerto a ver Stravinski. No intervalo todo o mundo saiu a tomar café. Na minha frente apareceram personagens de cor verde, muito cômicos, muito divertidos e muito amigos. Seu nome era cronopios e chegaram assim. Más tarde os críticos tem procurado explicações…”
As vinte historias que compõem esta última parte, podemos constatar uma explicita critica ao sistema; as  formalidades, a sociedade burguesa, a hipocrisia.
Os relatos são cheios de imagens fecundas, fantásticas que estimulam a nossa ilusão.
Cito aqui o texto chamado “Relógios”: Um Fama tem um relógio de parede e da corda nele todos os dias, um cronopio pendura na parede uma alcachofra e vai retirando folhas no sentido das agulhas até que fica o miúdo, o come e coloca um novo relógio alcachofra no lugar.
Outro chamado “A barata estreita”:  Um homem ,sua mulher e sua sogra bebem de um liquido chamado virtude e começam a enxergar com maior lucidez o comportamento na sua volta.
Outro chamado “A foto saiu movida”  Um cronopio tenta encontrar a chave no seu bolso e tira uma caixa de fósforos, este ato desencadeia suposições infinitas do tipo e se em vez disso acontecesse aquilo outro?
Cito aqui um pequeno relato que fecha o livro; As tartarugas e os cronopios , nele Cortazar mostra as diferentes atitudes dos  grupos protagonistas: As tartarugas admiram a velocidade, as esperanças não se preocupa, os famas se burlam e os cronopios desenham uma andorinha sobre seu casco.
Anotações.
Como diria Soledad Arrieta relatos que vão da ironia até a cotidianidade.
 Cortazar parece se deixar levar por um impulso inventivo e assim da renda solta á sua imaginação conseguindo  em alguns textos resultados inesperados próprios de sua vocação  poética de  criador, textos frescos, como improvisados, influencias de uma zona permissiva que o ao modo do conceito de improviso no jazz.
Em alguns relatos o resultado parece oculto a nossa razão, em outros o mecanismo disparado pela enxurrada de engenho provoca conseqüências inesperadas que seriam difíceis de serem atingidas no decorrer de um discurso na ordem do lineal.
Alguns críticos acharam algo “sem pé nem cabeça”, outros como Luis Hars (um dos mais famosos e influentes cronistas da literatura latino-americana) consideraram uma obra menor, a poeta Alejandra Pizarnic aprovou a obra.
No artigo “ historias de cronopios e de famas, uma guia para ler Cortazar”  Paul W. Bogerson  fala que na realidade esta obra é uma guia da realização de um individuo, uma mão simbólica, poética e metafísica.
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Final
O encontro  com o simbólico e a quantidade de imagens oníricas que deixa o impacto da leitura na nossa mente é inegável .
Imagens, criatividade. liberdade são as palavras que vem na mina cabeça, similar ao que aconteceu com alguns discos de jazz onde a ousadia era o valor o caminho que orientou a obra neste livro Cortazar nos convida a um salto no abismo  uma visita a conhecer sua inspiração.


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