sábado, 8 de março de 2014

Rayuela

Rayuela..cronica de um novo leitor..

Quando  a gente lê ao Cortazar a primeira coisa que vislumbra é a sua criatividade.
O autor vê Rayuela como uma tentativa de ir ao fundo num longo caminho de negação da realidade cotidiana e na admissão de outras possíveis realidades, de outras possíveis aperturas...
Acabei de ler Rayuela pela segunda vez...Rayuela ou "o jogo da Amarelinha" em português, um livro de Julio Cortazar que acabou se tornando um livro universal da literatura latino-americana assim como "Años de Soledad", nos anos 60 e 70, que ainda hoje mantem atualidade pela sua vocação inovadora...
Anos antes Cortazar tinha escrito "El perseguidor" . e seu personagem central  já era um antecedente de Oliveira (protagonista de Rayuela)... como se aquele conto já fosse um espaço onde já existiriam dois planos de realidade ou um outro lado (como ele chama) e muitos outros elementos  comuns que encontraremos na obra que estamos tratando.
El perseguidor já era uma Rayuelita diz o autor.

A leitura 
Comento primeiro que é uma obra com vários planos de realidade... por momentos uma sucessão de fatos ou ideias sem um sentido descritivo tradicional, parece que são apenas folhas soltas, trechos , ideias, situações absurdas , imagens sem um proposito ou um fio condutor único, a gente vai tateando e tentando se entender com a narrativa até que acaba que se familiariza com o que esta na nossa frente e acaba aceitando o jogo de incorporar as historias e até as conferencias como parte do relato..na realidade estamos assistindo o nascimento de um tipo de literatura que rompe com as formas da escrita, um tipo de novela audaz que se quer diferente.
Temos que situa-nos na época, estamos nos anos 60 com o experimentalismo a flor de pele, com a revolução cubana, os hippies, as rupturas de comportamentos, a ideia de liberdade que orienta ao mundo.
Ao mesmo tempo temos na nossa frente a um Cortazar maduro querendo realizar sua obra maior. Cortazar heredeiro da tradição literária universal e particularmente de Borges, de  Poe, Julio Verne, de Artl , de Dostoievsky..Cortazar se arrisca nesta obra a explorar todo o potencial de uma novela.


Recursos gráficos
Tem muitos jogos gráficos...o principal é o inicial aquele que o Cortazar induz ao leitor a duas possibilidades de percurso, uma linear e outra pulando paginas seguindo determinado plano que ele indica, basicamente intercalando capítulos do final  do livro na historia central.
Cortazar comentando sua estrategia : "é como dar a opção ao leitor de fazer sua própria escolha e de algum modo participar da seleção artística que o autor faz". Ele o chama do leitor cúmplice.
O livro se divide em três partes, duas partes iniciais,  recortadas pelo fato do protagonista morar em Paris ou em Buenos Aires (del lado de allá y del lado de acá), e uma terceira parte (de outros lados, capitulo prescindível) , são capítulos fora de contexto, que contem comentários ou até trechos soltos  ...
Outro jogo ( ou recurso estético ligado a foma) que encontramos em 
Rayuela é ,por exemplo, o fato de que o Cortazar trabalha com idiomas inventados...“Apenas él le amalaba el noema, a ella se le agolpaba el clémiso y caían en hidromurias, en salvajes ambonios, en sústalos exasperantes. Cada vez que él procuraba relamar las incopelusas, se enredaba en un grimado quejumbroso y tenía que envulsionarse de cara al nóvalo, sintiendo cómo poco a poco las arnillas se espejunaban, se iban apeltronando, reduplimiendo, hasta quedar tendido como el trimalciato de ergomanina al que se le han dejado caer unas fílulas de cariaconcia. Y sin embargo era apenas el principio, porque en un momento dado ella se tordulaba los hurgalios, consintiendo en que él aproximara suavemente su orfelunios".
Em Rayuela os recursos gráficos parecem querem extrapolar a ideia da linguagem, da historia , por exemplo, tem um outro trecho do texto onde se precisa pular de linha para poder ler duas narrações paralelas: 
 " En setiembre del 80, pocos meses después del falleci­ -
Y las cosas que lee, una novela,mal escrita, para colmo una
miento de mi padre, resolví apartarme de los negocios,
edición infecta, uno se pregunta...."
Vemos como as narrações pulam a linha o que cria outra disposição para o leitor...

 Outro caso de jogos gráficos que podemos comentar e que também aparecem no texto erros de ortografia propositais, deliberados; na entrada mesmo do livro tem duas páginas que poderíamos chamar de introdução onde se descreve a intenção da obra, e em determinado momento o texto se desliza com erros de ortografia como criando um jogo  de incerteza e com isso um certo humor ou desequilibro formal..." siempre que viene el tiempo fresco,  o sea al medio del otonio" ( na realidade teria que dizer otoño).

O Estilo
Ele defende a tésis de inserir linguagens marginais ... gírias, palavrões ou uma linguagem culta em determinadas circunstancias...defende a ideia de uma literatura que não seja "limpa"...como que cada coisa tem quer ser dita com sua própria identidade o do contrario não deveria ser dita...e cita como exemplo ao discurso de Roberto Artl quando este utiliza de lunfardo (gírias portenhas) para colocar discursos na boca do seus personagens, muitas vezes  oriundos do sub-mundo social.
Em determinados trechos encontramos cenas eróticas e imagens decadentes descritas com um vocabulário praticamente de rua...


Os protagonistas
Tem muitos personagens atuando simultaneamente o que faz difícil a identificação...inclusive tem personagens que tem nome e apelido e podem ser chamados de um ou outro modo de acordo ao momento...isto exige um exercício maior de memoria e atenção, mais aos poucos, com a possibilidade que oferece a literatura de voltar e  de ter varias leituras do mesmo trecho , os protagonistas começam a  aparecer  mais visíveis...com suas personalidades, seu conteúdo, suas relações.
Tem um casal protagonista central Horacio Oliveira, um argentino que mora em Paris e depois em Buenos Aires e Lucía, a Maga, que é sua namorada durante parte do relato .
A relação deles é muito linda, ela é uma menina uruguaia que mora em Paris  que usa meias pretas, sapatos vermelhos e fuma gaulouse ...meio desastrada e burra mais muito viva....ele um jovem meio seguro de si mesmo que tem gostos refinados.visita museus, fuma, bebe, fala sobre muitos assuntos e  olha pra ela com amor e com certa admiração a pesar de não poder compartilhar boa parte do seu mundo intelectual.....
Maga mora com seu filho (Rocamadour)...ele esta doente e  sua doença coincide com uma relação paralela que Olveira tem com a Pola..quando Rocamadour morre ela acaba saindo de cena. Oliveira regressa para encontra-la mais ela desaparece sem deixar rastros e isto acaba provocando uma desatabilidade emocional nele que depois de vários exageros  motiva a sua volta a Buenos Aires.
A carta da Maga que ele encontra quando regressa é muito emotiva...
Aqui o link para escutar ao próprio Cortazar lendo o texto...

http://youtu.be/otZAeYSe97s

Temos outros personagens secundários como a Pola a amante do Oliveira., temos a Talita que termina sendo como uma especie de "aparição" da Maga na Argentina e seu marido conhecido como Manu ou Traveler, um amigo da infância do Horacio, que acaba tendo uma relação muito afetuosa com ele.

Clube da Serpente

O "clube da serpente" um grupo de amigos  (Ronald, Ossip Gregorovius,Babs, Etienne) , se trata de pessoas diletantes sem oficio conhecido...eles  polemizam sobre a vida, o niilismo, a essência, a existência. 
Escutam musica, bebem e ao mesmo tempo compartem admiração pelo  Morelli.(um outro eu do Cortazar)...

Parte filosófica
Certas discussões abordam temas de ordem filosófico ou metafísico..temas  como A Realidade, discutem sobre se existem as coisas em sim ou o que temos são apenas interpretações destas...em outras palavras: os fatos ou nossa perspectiva deles...
pg 222 " Si. Te comento que mi manera de sentirla ( a realidade) o de entenderla es diferente. Es como las diferentes opiniones de la Gioconda o sobre la ensalada de escarola. La realidad esta ahí y nosotros en ella, entendiendola a nuestra manera pero en ella..
...
vos crees que hay una realidad postulable porque vos y yo estamos hablando en este cuarto y en esta noche, y porque vos y yo sabemos sabemos que dentro de una hora o algo asi va a suceder aqui una cosa determinada. Todo esto te dá una gran seguridad ontológica me parece... pero si pudieras asistir esta realidad desde mi o desde otro ...esto no te dá ninguna realidad válida"
As discussões também abordam o tema do que é a linguagem...Cortazar coloca na boca dos personagens discussões filosóficas reais da época e ele 
"Não se trata de una empresa de liberación verbal - dijo Etienne-, los surrealistas creyeron que el verdadero lenguaje y la verdadera realidad estaban censurados por la estructura racionalista y burguesa de occidente. 
tenían razón como lo sabe cualquier poeta , pero eso  no era más que un momento en la complicada peladura de la banana. Resultado, más de uno se la comió con la cáscara. Los surrealistas se colgaron de las palabras en vez de despegarse brutalmente de elllas, como quisiera hacer Morelli  desde la palabra misma....No sospecharon que la creación de un lenguaje muestra la estructura humana"...
O tema do tempo recorrente na obra de Cortazar tem assim como no "perseguidor" uma divisão entre o tempo cronológico e o tempo artístico o subjetivo.
pg 98 " fabricado una teoria sobre el tiempo real y el poético".
Enumerando a discussão falamos da possibilidade de perceber a realidade dependendo dos pontos de vista ( de uma subjetividade) e também falamos da realidade como segurança com a sensação de algo que vai a ocorrer ( como lo previsto).. ele claro que coloca o imprevisto fazendo parte da realidade... falamos também dentro deste item  do que é a linguagem e do que é o tempo.



Intercala historias
Assim como na historia da literatura existem muitos exemplos de historias dentro da historia (no Quixote, nas mil e uma noites) Cortazar aqui interfere com narrações de fatos ou pessoas que podem ser separados da historia central...parece que o método que ele teve para a construção da novela Cortazar foi o de ter muitos "papelinhos" e depois o colocar numa ordem muitas vezes caprichosa ou inesperada.
Uma dessas historias é da madame Berthe Trépat onde se misturam imagens absurdas, cômicas, grotescas,  na verdade uma crítica ao experimentalismo sem proposito que as vezes acontece na musica contemporânea.
Outra historia que acontece de modo paralelo é a de Ivonne Guitry recriada aqui como uma amante do Gardel.

trechos poéticos

 (Fragmento de Rayuela), Capítulo 7:
Toco tu boca.
Con un dedo toco el borde de tu boca.
Voy dibujándola como si saliera de mi mano,
como si por primera vez tu boca se entreabriera,
y me bastara cerrar los ojos para deshacerlo todo y recomenzar.
Hago nacer cada vez la boca que deseo,
la boca que mi mano elige y te dibuja la cara,
una boca elegida entre todas,
con soberana libertad.
Elegida por mí para dibujarla con mi mano en tu cara
y que por un azar que no busco comprender,
coincide exactamente con tu boca que sonríe
por debajo de la que mi mano te dibuja.
Me miras.
De cerca me miras…

Outro
"¡Música, melancólico alimento para los que vivimos de amor!”.

A relação com a música
Tínhamos falado do elemento musical como parte do cenário de Rayuela  "-hablándose con la Maga entre el humo y el jazz", y mientras los demás esperan que llegue Wong con el café: "Jelly Roll esta en el piano, marcando el compás con el zapato", como si fuera el propio Jelly Roll el que tocara en vez de un disco viejo".
Podemos observar vários tipos de relações das quais podemos falar ...a escrita parece tentar se parecer a um instrumento de jazz improvisando...a sensação de algo pouco refletido, espontâneo permeia o estilo da narração.
Por momentos este proposito é explicito Cortazar ao falar da necessidade de um swing na literatura como algo essencial para que se realize uma obra literária.
O próprio Cortazar fala: “Hay una especie de ritmo que no tiene nada que ver con la rima o las aliteraciones. Una especie de latido que si no está en lo que yo hago es una prueba de que no sirve y que hay que tirarlo para volver a empezar”.
Em relação aos estilos citados temos a música clássica contemporânea (Schoemberg, Boulez), a música clássica tradicional (Bach, Mozart) , o tango ("mi noche Triste", citações de letras e de uma atmosfera tangueira na totalidade de Rayuela) e fundamentalmente o jazz.
Cortazar é amante de uma segunda geração do jazz Luis Amstrong,Jelly Roll, Ooscar Peterson.Lester Young...
É importante falar que as audições nos orientam a um Cortazar ligado a um jazz tradicional, a um blues-jazz e não ao Parker, Monk, Coltrane ao jazz mais atual.
Mostramos aqui um link para ouvir o disco Jazzuella que recolhe 21 temas citados no livro.
http://www.youtube.com/watch?
v=AElmspfRowg&list=PLCF70E974BFCC11EC&feature=share&index=11

Pintura
Cortazar também cita a Klee e a Rembrandt como parte de suas preferencias artísticas.

Final
Dois momentos dramáticos intensos na obra...quando morre o filho da Maga e quando Oliveira no final enlouquece e se apetrecha no quarto da clinica psiquiátrica...a sensação, para mim de ter lido uma obra de arte importante, uma sensação de que a vida vale a pena ao igual que quando vemos um bom film , ou escutamos uma bela melodia ...este é meu homenagem a  este grande livro de Cortazar..minha audição da sua Arte....