sexta-feira, 5 de março de 2021

PIazzolla sempre Piazzolla.

 

Piazzolla 100 anos.


Piazzolla alem de ser um dos maiores músicos do século XX  ele é um guerreiro. Astor representa para os músicos uma luta pela arte, uma luta por tentar desenvolver uma música contra a estreites dos gêneros  musicais, as correntes comerciais e contra o  conservadorismo.

Para homenagear Piazzolla preferimos não entrar em anedotas particulares ou em descrever sua vida pessoal, vamos falar então da sua musicalidade E de algumas historias que ajudam a descrever sua personalidade e os retornos que ele provocou.

Em outras palavras para comemorar os 100 de Astor vamos falar sobre alguns temas que estão relacionados diretamente com a sua arte e sua música. Aqui uma guia dos pontos que vamos a desenvolver.

1)      Os ritmos que Piazzolla explora.

2)      Os recursos musicais e as formas que usa Piazzolla.

3)      A relação com o Brasil

4)      A sua essência poética.



 

Os ritmos que Piazzolla usa.

O Tango normalmente usa o compasso de 2/4 com um acento forte acento no primeiro tempo. Piazzolla por momentos usa este recurso.

Escutamos aqui o tango “La camorra 1”.

https://youtu.be/bsaurUkYczY

E a introdução de “Adios Nonino”.

https://youtu.be/VTPec8z5vdY

Também por momento ele inverte o acento do compasso  apoiando o centro de gravidade no segundo tempo se assemelhando ao comportamento do Samba, isto ocorre muitas poucas vezes.

Escutamos o tango “La Camorra 2” (minuto 23:46)

https://youtu.be/USlYQ686TfM

Aqui outro exemplo desse comportamento na música “Cite Tango”.

https://youtu.be/n5aopeXSYRA

 

Mas  na realidade o ritmo que Piazzolla mais usa é uma célula conhecida com 3/3/2. Esta célula está na origem do Tango com outro andamento e outro colorido.

A origem se chama milonga campera e Piazzolla até usa esta célula em músicas que evocam um passado remoto do tango. Podemos conhecer este comportamento ouvindo Jacinto Chiclana.

https://youtu.be/SU9CIZNcz-8

Piazzolla usou esta célula muitíssima vezes em um andamento muito mais rápido e num contexto de 4/4, este recurso lhe serviu para romper com os limites do compasso 2/4 normal.

Escutamos este tipo de ritmo, que é muito normal na obra de Astor.

https://youtu.be/k_pLL278zoM

Piazzolla usa o ritmo de ¾ de forma ocasional, aqui um trecho onde ele usa esse compasso.

Música “La Camorra 3”(minuto 26,20)

https://youtu.be/USlYQ686TfM

Y também usa esse compasso , mas com sentido de valsa na primeira parte de balada para um loco, aqui é mais usado ao serviço de um clima cênico .

https://youtu.be/XLVJxxq0ncU

Não sei se de forma consciente, mas Piazzolla também usa células da tradição do Candomble de Ketu como o Opanijé

Aqui um exemplo

https://youtu.be/XTFJEtVlGi4

Também usou , ao menos uma vez, o compasso de 7/8

Aqui na música “Vayamos al diablo”.

https://youtu.be/qo3CNMV_qn8

A instrumentação relacionada com o ritmo.

Como instrumentação percussiva Piazzolla usa instrumentos da formação sinfônica como tímpanos, vibrafone, marimba, sinos de tubo, etc seguindo a tradição de comportamento destes instrumentos o percussionista Jose “Pepe” Corriale foi o nome mais convocado nessa função.

Em um determinado momento incorporou a bateria trazendo o sentido de levada na direção da célula que mencionamos como 3/3/2.

Os bateristas que Piazzolla mais tocou foram Enrique “Zurdo “ Roisner, Luis Cerabolo e o  baterista italiano Tulio De Piscopo.

 As ideias de Piazzolla em relação com a parte rítmica conta com a  incorporação de efeitos e de timbres novos como o do güiro (reco-reco), este instrumento é realmente um achado de Astor em relação com a instrumentação do tango novo porque naturalmente é um instrumento da tradição da música latina.

Piazzolla usa também muitos instrumentos percussivamente, ele explora timbres e cria situações novas onde explora efeitos diferentes.

 Os efeitos ocorrem no violino que ele chamou de “tambor” e outro da “chicharra’ o primeiro é um efeito que tenta imitar o som de uma caixa clara e que se consegue percutido com pizzicatos e abafando as cordas ao mesmo tempo com a mão esquerda, e o da “chicharra”, o nome é esse porque parece com o som da cigarra ou o de uma lixa, que se consegue esfregando fortemente o arco, na parte do talão, nas cordas atrás do cavalete do violino .

 Piazzolla usa muito o efeito produzido por um longo glissando descendente que ele chamou de “látigo” (chicote) e sua variante chamada de “perro” (cachorro) que esse glissando se interpreta com um som mais curto efetuado no sentido ascendente.

Aqui um exemplo onde aparece el latigo y em determinado momento como estes efeitos se sucedem como se fosse uma percussão de pizzicatos.

Música Pulsación n 2 e 3 especialmente a partir do minuto 12 34

https://youtu.be/urou6jIXbJ8

Outros dois recursos que Piazzolla inventou foi o de bater no corpo do bandoneon e provocar um som de maderia tipo “Toc, toc” e na tampa do piano gerando um efeito similar. Alem disso tem um efeito no qual ele quer provocar um som tipo bumbo de bateria, para isso ele pede ao instrumentista bater nas costas e no corpo do contrabaixo para criar um som de madeira grave e agudo para ser usado como percussão ele chamou esse efeito de “trastiera”.

Aqui um exemplo na introdução de “La muerte del Angel” como Piazzolla usa o recurso de bater no bandoneon.

https://youtu.be/IXGlbTeZmk0

E aqui um exemplo da música “Verano Porteño” para mostrar o efeito do contrabaixo usado como percussão batendo nas costas do instrumento.

https://youtu.be/88kwymnEj5s

2) Os recursos musicais e as formas que usa Piazzolla.

Para muitos na Argentina Piazzolla extrapolou o limites do tango e por isso não é considerado tango sua música , mas a relação de Piazzolla com o tango é muito mais expressa e profunda do que alguns imaginam.

Falando sobre os recursos que usa usa Piazzolla que estão relacionados com a tradição do tango podemos citar dois: um é o que se chama “El arrastre” (arrastar uma nota) tocar ela de forma que a interpretação mostre uma antecipação do ataque de uma nota e o “fraseado” que normalmente não esta escrito e que está relacionado com o “sotaque” com a forma interpretativa de uma frase musical.

Isto colabora para criar o que na gíria do tango se chama de “la mugre”, a  sujeira que tem que existir para que o tango não fique descaracterizado.

O ostinato.

O uso do ostinato em Piazzolla chega a ocupar um lugar temático como ocorre na música “Esqualo” e em “Libertango” que a gente já citou

https://youtu.be/j1v3jST9H5Y

As Fugas.

O uso das fugas também é algo recorrente em Astor , isso vem de seu convivência com a música de Bach quando ele estudo com Bela Wilda, um pianista húngaro discípulo de Sergei Rachmaninoff e depois quando estudou fugas a quatro vozes com Nadia Bulanger em Paris.

Aqui dois exemplos de fugas

O tema “Fugata” e o tema “Fuga e Mistério” que faz parte da opera “Maria de Buenos Aires”

https://youtu.be/mBw_ZJi_cT4

https://youtu.be/7XdaFR6mIC4

 

A RELAÇÃO DE PIAZZOLLA COM BRASIL.

Piazzolla visitou muitas vezes o Brasil e teve relações estreitas com muitos músicos. O público lê retribui essa paixão ouvindo suas interpretações e centos de grupos de música interpretam suas composições homenageando sua obra.

Piazzolla toca pela primeira vez no Rio com apenas 20 anos em turnê com a orquestra de Troilo no radio Nacional.

Depois como líder de seus projetos se apresenta inúmeras vezes no Brasil e trava parcerias com músicos como Gismonti com o qual acaba desenvolvendo uma longa amizade.

Vou narrar uma anedota que aconteceu com Vinicius em caño 14: certa noite de Buenos Aires, Piazzolla se apresentava com seu quinteto num recital. Amelita Baltar cantava que as canções que ele tinha escrito com Ferrer. De repente, depois dos aplausos e rompendo um silêncio de missa que antecedia a próxima canção, Piazzolla ouviu uma voz gritando em português: “Que maravilha! Filho da puta! Filho da puta!”. E em seguida, de pé na frente do palco, o homem dos gritos desandou a aplaudir. Piazzolla ficou pasmo, até perceber que o homem era Vinicius de Moraes, que ele não conhecia pessoalmente. A amizade com o poeta nunca mais parou.

Nos primeiros anos da década de 70 Piazzolla pede para reunir a todos os músicos importantes do Rio para um concerto dedicado a especialmente para a classe musical.

Nessa reunião, numa casa de Jazz “Number One” em Ipanema , na zona sul carioca, estavam Tom Jobim, Nivaldo Ornelas, Chico Buarque, Milton Nacimento, Caetano Veloso, Luizinho Eça, Leny Andrade, Egberto Gismonti, Edu Lobo, Dory Caymmi, Dom Um Romão, Elis Regina e muitos dos músicos dedicados à música instrumental do Rio, relatos de quem esteve presente afirmam como aquelas interpretações intimas de músicas como “Milonga del Angel” ficaram na memória de todos eles como algo realmente sublime.

Em 1973, Piazzolla toca ao vivo na USP. Num belo momento, oferece uma composição sua aos jovens criadores do Brasil, em especial Milton Nascimento, a quem dedicou o tango: "Retrato de Milton"

https://youtu.be/_h_HH0aV5SY

Anos mais tarde Piazzolla junto com o poeta Geraldinho Carneiro faz parceria em várias obras e em 1975 lança um disco interpretado pelo Ney Matogrosso onde este canta a composição “As Ilhas” da dupla Piazzolla e Carneiro.

Sua relação com músicos brasileiros não acaba ai: Piazzolla escreve para dois violões uma obra dedicada ao duo Assad (Sergio e Odair Assad) chamada “Tango Suite”.


Anos mais tarde toca no Maracazinho e realiza várias turnês pelo Brasil inclusive em 1986 Piazzolla toca ao vivo em um programa da emissora O Globo chamado “Chico e Caetano”.  

Sua última aparição no Rio foi em 1989 com um novo sexteto. Astor toca na Sala Cecilia Meirelles, fazem parte do seu grupo o bandoneonista Daniel Binelli, o pianista Gerardo Gandini e o guitarrista Horacio Malvicino . Dias depois reestreia a sua opera “Maria de Buenos Aires” no Teatro Municipal do Rio .

Uma historia que muitos poucos conhecem é que Piazzolla se consultava com um pai de Santo no Rio, às vezes até viajava exclusivamente para fazer um encontro com ele. E que fruto desses encontros surge o nome da música “Deus Xango” que Astor grava junto a Gerry Mulligam no histórico disco Reunión Cumbre.



FOTOS

Na primeira foto uma reunião intima em Buenos Aires onde podemos ver a Piazzolla e Horacio Ferrer, (Fuente: GEMAA (Grupo de Estudios en Música y Artes Afrobrasileñas) / Sergio Radoszynski RP Music) Na segunda junto a Chico, Nara Leão, Nana Caymmi, Astor Piazzola e Amelita Baltar na casa do poeta Vinicius de Moraes (1973) | foto ©Nelson Santos.

A estética de Piazzolla.

A música de Piazzolla conseguiu aquilo que todos os criadores perseguem, isto é uma desenvolver uma assinatura, se parecer a si mesmo.

Muito se fala sobre se a música de Piazzolla seria tango ou uma mistura entre música popular , de concerto e de vanguarda como a que podemos escutar nas composições de Ginastera, Béla Bartók, Villa Lobos ou Manuel de Falla. Isto é, uma música que tem varias vertentes,  mas que tem no seu alicerce o espírito de algo essencial, neste caso do tango argentino, isto muito a partir do bandoneon e da paisagem sonora que nos sugere.

 Carlos Kuri, no seu livro “Piazzolla, la música limite”, faz uma análise profunda da estética, do idiomatismo e da construção do tango de vanguarda piazzollano e sugere que a sua música ultrapassa os sentidos, vai além do racional, do emocional e diz que com seus ritmos e dissonâncias atinge o corpo.

Andre Marsili no seu livro “Reflexión sobre la autenticidad en el tango rioplatense” nos convida a pensar na noção de autenticidade na obra de Astor, nos juízos de tanguidade porque por momentos a obra de Piazzolla não foi reconhecida na Argentina como tango, mas como música cidadã ou música contemporânea da cidade de Buenos Aires.

Francisca Rutigliano desde sua página “Estudos Heideggerianos” afirma que a Música, tanto mais ela cala em palavras, mas ela fala em Tempo, mas o Tempo da Música de Piazzolla é um Tempo que não acumula imagens propriamente, antes intensifica a amplitude da dor por sobre toda e qualquer imagem eventual. Ele é o próprio passado puro de Proust, sem as figuras particulares de madeleines enquanto protagonistas; é dor pura, a mesma dor por sobre toda e qualquer figura que possa vir à tona. Poder-se-ia dizer que nela, a dor é a única figura concreta, pairando sobre tudo, sem se deter em nada — como azul do Céu.

Conclusões.

Com este artigo pretendemos abrir um olhar para um Piazzolla renovador, um Piazzolla lutador e um Piazzolla poético.

Sua música realmente transcende os limites da música de concerto e da música popular, suas sincopas criam um clima eletrizante e suas melodias leves desenham paisagens melancólicas e sofridas.

Ao longo dos anos a música de Astor vem ganhando cada dia mais e mais admiradores no mundo todo, isto mostra como existe uma fatia da humanidade que não se importa se a música dele é jazz, tango ou música clássica e que escuta as composições apenas pela beleza e pelo sentimento que ela consegue passar.

Piazzolla desde a cor obcura e trágica da sua música nos mostra que justamente o lugar da arte é de transformar em belo todo o sofrimento humano.

Viva o centenário de Astor!

 

 

Bibliografia.

“A abordagem das técnicas estendidas nas Quatro Estações Portenhas de Piazzolla: o regente como mediador do processo interpretativo MODALIDADE: COMUNICAÇÃO SUBÁREA” por Leandro Fernandes de Oliveira Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

“Introdução à música de Piazzolla” (teses de mestrado)  por Ivan Jose Quintana.

Intertextualidad en “la historia del tango” según Piazzolla por Omar Garcia Brunelli.

“Técnicas estendidas de música contemporânea” por Leandro Fernandez de Oliveira .Universidade Federal Rio Grande do Norte.

“Piazzolla, la música limite” por Carlos Kuri.

“Reflexión sobre la autenticidad en el tango rioplatense” por Andrea Marsili.

“O Tempo no fundamento da interpretação que o Dasein faz do Mundo e de seu próprio ser-no-mundo, visto na possibilidade concedida pela Música” por Francisca Rutigliano.