domingo, 30 de dezembro de 2018

A Dançarina de Izu.


A Dançarina de Izu.

O conto poético de Yasunari Kawabata faz honras ao pensamento que valoriza a brevidade e a beleza.
Em 60 paginas o autor nos revela impressões da natureza, dos sons do tambor, dos gestos do amor fugaz e do efêmero dos sentimentos juvenis.
A delicadeza narrativa reflete bem a concepção singela da arte oriental.
A edição brasileira da editora “Estação Liberdade” traz alem do conto um capítulo feito com extrema delicadeza pela professora Meiko Shimon dedicado a descrição da literatura japonesa do século XX  no qual se insere Kawabata e por fim uma cronologia sobre sua vida.

 O autor.

Uma vida marcada por perdas fundamentais na sua infância não impedem que o autor realize uma vida artística brilhante com todo esse desamparo.
Sua obra chega a conhecer a celebridade ao ganhar o premio Nobel de literatura.
Sua concepção de arte o leva a valorizar a “beleza revelada na fragilidade e fugacidade da impermanência”.

A historia.

Um estudante de 19 anos viaja pelo interior do Japão se hospedando em pequenas pousadas, no percurso conhece um grupo de artistas peregrinos, compartilha o passeio com o grupo e desenvolve uma atração platônica por uma artista de 13 anos.
O tema do amor impossível e o misterioso alimentam a trama. 

O pincel.  

Neste conto a descrição das cores ganha uma importância especial, Kawabata similar a um pintor fala de “pentes com cor de pêssego” e de “arvores amareladas”; ou nos apresenta  imagens sonoras como : ”as vozes das mulheres pareciam trovões atravessando o céu azul”.
A sexualidade sutil passa do olhar malicioso ao sorriso purificador: “Observando suas pernas senti meu coração em êxtase , era uma criança exibindo seu corpo ao sol, tomado por um caloroso prazer , continue a sorrir “.
 Teve várias versões cinematográficas, sendo a primeira de 1933, sob a direção de Heinosuke Gosho. Aqui o link do filme
Recomendo esta pequena grandiosa obra de arte.

terça-feira, 11 de dezembro de 2018

Os Prêmios de Cortazar.


Os prêmios.

Cortazar escreve este seu segundo romance publicado em 1960, antes do Jogo da Amarelinha. Ao longo das 164 páginas assistimos em tempo real os três dias que dura uma viagem em barco que termina de forma trágica.

O estilo.

Como é recorrente no estilo de Cortazar sempre existe um “outro lado”, tudo é nebuloso. No livro os personagens ganham como recompensa de um sorteio uma viagem em barco, mas eles não conhecem o destino do passeio e ainda para alimentar o clima ambíguo dos fatos, os tripulantes, aparentemente suecos ou finlandeses, não se comunicam com os passageiros e por esse comportamento estranho recebem o apelido de glúcidos.
Mas o que provoca o núcleo dramático é que dentro do barco os passageiros não podem passar da proa para a popa, este fato faz que eles nutram pareceres imaginários desse outro lado desconhecido e este é justamente o conflito que alimenta o ritmo narrativo.
Como acontece no conto “A casa tomada”, não existe um perigo real, apenas uma ameaça ou uma interdição que provoca a fantasia dos passageiros e que precipita o final trágico.

A trama.

A cena ocorre em Buenos Aires, no relato um grupo de pessoas ganha uma viagem em um sorteio. Existe uma primeira confraternização (no bar London) onde se apresentam os personagens; depois como diz o próprio romance entramos em uma espécie de detenção do tempo: “um adiamento do futuro”; os passageiros entram no barco (O Malcolm) sem saber o rumo; uma das hipóteses é Liberpool , mas a partida se interrompe e o barco fica ancorado em Quilmes ( há uns 20 km de Buenos Aires). A viagem recomeça e o autor dedica várias páginas a descrever a beleza de uma dama ruiva, o corpo de um adolescente, o romance de um casal e a vida plana dos passageiros dividida entre a piscina, o bar e os camarotes.
A narrativa não tem um protagonista único, são vários os personagens, eles se apresentam em duplas: o casal Nora e Lucio na sua intimidade; Claudia com seu filho Jorge, Gabriel Medrano e Persio, Raul e Paula; o senhor Trejo e Felipe, Nelly e sua mãe (dona Pepa) , Pelusa ( Atilio Presutti), Carlos Lopez, o doutor Rastelli e Don Galo.
Os passageiros são impedidos de circular livremente pelo barco devido a um rumor de tifus; isto provoca que um grupo decida romper o cerco e invade a parte proibida do barco; ocorre um enfrentamento, morre um dos tripulantes e um passageiro. A viagem é irrompida pela polícia que impõe que o relato oficial oculte a morte do passageiro. Alguns se revoltam com a falsidade, mas acuados aceitam a versão oficial e voltam a suas vidas normais.

Persio.

  Um dos personagens mais originais é o Persio, ele funciona como uma espécie de pretexto para que Cortazar rompa o discurso narrativo e se permita entrar em um território mais livre, em outra dimensão como o próprio autor confessa. Aqui alguns dos seus monólogos:
“ Aprovechando el diálogo materno-filial Persio piensa y observa en tornó, y a cada presencia aplica el logos o del logos extrae el hilo, del meollo la fina pista sutil con vistas al espectáculo que deberá —asi él quisiera— abrirle el portillo hacia la síntesis. Desiste sin esfuerzo Persio de las figuras adyacentes a la secuencia central, calcula y concentra la baza significativa, cala y hostiga la circunstancia ambiente, separa y analiza, aparta y pone en la balanza. Lo que ve adquiere el relieve que daría una fiebre fría, una alucinación sin tigres ni coleópteros, un ardor que persigue su presa sin saltos de mono ni cisnes de ecolalia. Ya han quedado fuera del café las comparsas que asisten a la partida (pero, de juego se habla ahora) sin saber de su parada. A Persio le va gustando aislar en la platina la breve constelación de los que quedan, de los que han de viajar de veras. No sabe más que ellos de las leyes del juego, pero siente que están naciendo ahí mismo de cada uno de los jugadores, como en un tablero infinito entre adversarios mudos, para alfiles y caballos como delfines y sátiros juguetones. Cada jugada una naumaquia, cada paso un río de palabras o de lágrimas, cada casilla un grano de arena, un mar de sangre, una comedia de ardillas o un fracaso de Juglares que ruedan por un prado de cascabeles y aplausos. Así un municipal concierto de buenas intenciones encaminadas a la beneficencia y quizá (sin saberlo con certeza) a una oscura ciencia en la que talla la suerte, el destino de tos agraciados, ha hecho posible este congreso en el London, este pequeño ejército del que Persio sospecha las cabezas de fila, los furrieles, los tránsfugas y quizás los héroes, atisba las distancias de acuario a mirador, los hielos de tiempo que separan una mirada de varón de una sonrisa vestida de rouge, la incalculable lejanía de los destinos que de pronto se vuelven gavilla en una cita, la mezcla casi pavorosa de seres solos que se encuentran de pronto viniendo desde taxis y estaciones y amantes y bufetes, que son ya un solo cuerpo que aún no se reconoce, no sabe que es el extraño pretexto de una confusa saga que quizá en vano se cuente o no se cuente”.
Ou: “Conozco los olores de la calle Paraguay, y también Godoy Cruz de Mendoza, donde la brújula del vino corre entre gatos muertos y cascos de cemento armado. Hubiera debido mascar coca en cada rumbo, exacerbar las solitarias esperanzas que la costumbre relega al fondo de los sueños, sentir crecer en mi cuerpo la tercera mano, esa que espera para asir el tiempo y darlo vuelta, porque en alguna parte ha de estar esa tercera mano que a veces fulminante se insinúa en una instancia de poesía, en un golpe de pincel, en un suicidio, en una santidad, y que el prestigio y la fama mutilan inmediatamente y sustituyen por vistosas razones, esa tarea de picapedrero leproso que llaman explicar y fundamentar. Ah, en algún bolsillo invisible siento que se cierra y se abre la tercera mano, con ella quisiera acariciarte, hermosa noche, desollar dulcemente los nombres y las fechas que están tapando poco a poco el sol, el sol que una vez se enfermó en Egipto hasta quedarse ciego, y necesitó de un dios que lo curara”.
Aquí um trecho onde explora a imagem de um quadro de Picasso: “Tal vez sea necesario el reposo, tal vez en algún momento el guitarrista azul deja caer el brazo y la boca sexual calla y se ahueca, entra en sí misma como horriblemente se ahueca y entra en sí mismo un guante abandonado en una cama. A esa hora de desapego y de cansancio (porque el reposo es eufemismo de derrota, y el sueño máscara de una nada metida en cada poro de la vida), la imagen apenas antropomórfica, desdeñosamente pintada por Picasso en un cuadro que fue de Apollinaire, figura más que nunca la comedia en su punto de fusión, cuando todo se inmoviliza antes de estallar en el acorde que resolverá la tensión insoportable”.

A sedução.

O desejo e o sexo aparecem várias vezes: nas imagens oníricas de uma masturbação, na descrição de Paula como uma mulher ruiva, sedutora que atrai os olhares de toda a embarcação e do Felipe um jovem de 16 anos que acorda desejos no personagem de Raul e que se envolve em uma situação sedutora com Bob, um dos marinheiros.
Queria remarcar que é a primeira vez que me confronto com uma descrição homossexual em Cortazar.

A organização interna.

Temos um Prólogo, depois começam a ser contados os dias da viagem, assim temos o primeiro dia,. segundo, terceiro , um epilogo e uma nota do autor onde Cortazar comenta, entre outras coisas, a falta de planos com a que foi construída a obra.
O romance abre com uma citação do Idiota de Dostouevski: ”¿Qué hace un autor con la gente vulgar, absolutamente vulgar, cómo ponerla ante sus lectores y cómo volverla interesante? Es imposible dejarla siempre fuera de la ficción, pues la gente vulgar es en todos los momentos la llave y el punto esencial en la cadena de asuntos humanos: si la suprimimos se pierde toda probabilidad de verdad”.

Final.

Cortazar experimenta a ruptura com o discurso “normal” literário e se aventura em sequências aparentemente inspiradas nos surrealistas ou no improviso do jazz.
O argumento nos apresenta uma historia simples, em aparência, mas detrás da qual subjazem temas mais profundos: O tema do desconhecido, aquilo que não podemos alcançar, também a crítica ao patriotismo vazio, aos lugares comuns, ao temor da imagem social, ao conformismo com os valores estabelecidos, a cobardia e a superficialidade, ao preço que há que pagar por o valor ou por quebrar as grades.


sexta-feira, 2 de novembro de 2018

Drama de Aline Bel estreia na literatura brasileira.



Novos autores.

Alem de obras de escritores consagrados chega à minhas mãos o trabalho de novos literatos.
Primeiro foi João Vereza com seu premiado “ Noveletas”, um romance no estilo narrativo do Guimarães Rosa, depois meu amigo Paulo Roberto Andel com suas crônicas do cotidiano carioca : “ Cenas do Rio” e recentemente o “Os trechos dos livros que ainda não foram escritos”.
Agora acabo de receber o primeiro romance da escritora paulista Aline Bel: “O Peso do pássaro Morto”.
O primeiro mérito do romance esta no seu trágico título o segundo é que ele se deixa ler, em dois dias terminei as 165 páginas.
A dedicatória nos remete a um fato real: ”Um canário que/ assustado  de caber na palma/ morreu na minha mão”.

A forma.

A narração se divide nas faces etárias da protagonista (8/17/18/28/37/48 e 52 anos) e um epílogo.

O argumento.

A obra de Aline Bel relata a vida e as perdas de uma mulher urbana, solitária que assiste as ausências de sua amiga da infância, do pai de seu filho, de seu filho e por ultimo de seu cachorro, episódio que acaba desabando sua existência.
Numa redação na escola e na sua lapida a frase “A cura não existe“ parece nos indicar, como diz a escritora pernambucana Micheliny Verunschk, o tema central do livro: o não reparo para nossas perdas.

Os recursos de estilo.

O uso de minúscula no lugar da maiúscula, o uso de jogos gráficos tal vez inspirados no Apollinaire ou na poesia concreta parecem saídas lúdicas que alimentam o relato.
Embora desconhecemos o nome da personagem central, o uso da primeira pessoa dá ao relato um tom de veracidade que o aproxima de uma narração confessional.
Embora seja uma ficção, o livro parece essencialmente autobiográfico.

 Os personagens.

Tudo gira em torno de um personagem central e das perdas que ela sofre ao longo da sua vida; primeiro sua amiga carla (escrito por momentos dessa forma no livro), do Luíz (marido de dona Rosa) meio um sábio e dublê de médico do qual ela se desencanta; segue com Pedro um namoradinho que acaba a estuprando; seu filho , seu neto e seu cachorro Vento que produz com sua morte o desmoronamento derradeiro da sua vida.

O texto.

Belas imagens como as que aparecem na infância da protagonista chocam com a agressividade de cenas violentas . O uso excessivo de palavrões trazem um tom coloquial desaconselhado na dramaturgia.

Final.

Boa estréia para Aline Bel , o drama atual realizado em um contexto realista das cenas não impede a aparição de imagens poéticas. Parabéns.


quinta-feira, 30 de agosto de 2018

Andel novo de novo

Sobre “os trechos dos livros que não foram escritos”.
Do alto do prefacio Marcelo Migliaccio anuncia que o texto de Paulo Roberto Andel poderia inspirar mais de 30 livros.
A leitura é amena e nas páginas encontramos um pouco de crônicas do cotidiano carioca, um pouco de crítica social, um pouco de Jack Kerouac, de Charles Mingus misturado com lindas garotas, bêbados, futebol , farofa de bacon, Na Ozzetti e papo de boteco.
A forma chama atenção e lembra o “jogo da amarelinha” de Cortázar; capítulos de uma frase e outros de três páginas se sucedem sem uma seqüência lógica.
Sou muito grato ao autor por ter dedicado um capítulo a minha pessoa; meu xará tricolor narra sua experiência ao assistir alguns shows que eu fiz, também descreve a cena do jazz contemporâneo na suas páginas; o mérito não é pequeno: muitos poucos escritores transitam pelo mundo musical.
Para finalizar cito alguns trechos de destaque artístico, falando da solidão: “Ela esta ai, como se quisesse te espionar”; ou quando fala sobre um olhar: “Eliane olhava para o mar como se estivesse procurando algo que nunca tinha achado antes”. Ou quando autor realiza uma “Pergunta crucial: O que você esta fazendo com o resto da sua morte”.
 O nome sugere algo que não esta e a inclusão da palavra “ainda” no título nos remete a um, além disso, algo que ira a existir.
Longa vida ao meu amigo Andel e a sua parceira literaria Amanda Rodrigues.


terça-feira, 26 de junho de 2018

O fuzil de caça.


Yasushi Inque.

Chegou até minhas mãos um filme baseado no livro “O fuzil de caça” de Yasushi Inque.

Como sou apaixonado pelo cinema japonês descobri este filme instigante de Heinosuke Gosho e ele me levou a conhecer o relato inspirador do roteiro. O filme se chama Ryoju (Hunting Rifle) é de 1961,-aqui o link - https://youtu.be/WhOwGY8xVmg-.

A obra literária foi escrita em 1949 , na suas páginas encontramos toda a discrição e a sutileza oriental; o conto surpreende pela elegância e pela forma do relato: um preâmbulo, três cartas e um epílogo.

O enredo.

Um poeta é convidado para publicar numa revista de caça, ele escreve um poema, mas como não tinha nenhuma adesão com a caça acaba descrevendo no texto a figura de um homem desconhecido que viu um dia numa paisagem de inverno com um fuzil nas costas.  Ele dá ao poema o nome: O fuzil de caça.  O poema termina dizendo: ”a solidão de um homem irradiando uma beleza sanguinária, que nunca mostraria ao mirar uma criatura viva”.
Com o tempo o poeta recebe uma carta de um leitor se identificando como o personagem daquele poema.  A carta e sucinta e direta não deixando muita informação sobre seu autor.  No entanto, ele recomenda ao poeta que leia as cartas num pacote que mandará em futuro próximo. Para que entenda o que passava pela mente daquele homem que o inspirou. Dias depois o poeta recebe um pacote com cartas de três mulheres diferentes que endereçadas ao caçador descrevem-no de acordo com cada uma de suas visões, elas são: a  sua sobrinha,  sua esposa e sua amante.

As perspectivas.

Primeiro temos a visão do poeta sobre um homem desconhecido. Depois alguém se reconhece naquele poema, por último o que se descobre nas cartas.  O jogo epistolar é fascinante e Josuke Misugi, personagem principal, acaba revelando uma relação extraconjugal que emerge nas confecções dos envolvidos.

As cartas.

O autor parece nos querer dizer que a realidade, os fatos, não são necessariamente o que são, o que acontece depende também de quem narra esses acontecimentos. Ao contrario do que seria a afirmação do real como algo único e objetivo; no relato são os olhares dessa realidade o que constroem a historia. O autor, como se fosse um sortilégio, abre três dimensões na nossa frente a partir de um fato único.
Na primeira carta a jovem Shoko, sua sobrinha, ao mesmo tempo filha da amante do protagonista, escreve para ele (seu tio Josuke) após a morte da sua mãe.
Conta que descobriu a relação paralela que sua mãe (Saiko) tinha com ele, descreve a ruptura da relação da sua mãe com seu pai por conta de uma infidelidade e decide se afastar deste triângulo e recomeçar uma nova vida longe dali.  
Na segunda carta Midori,a mulher de Josuke, conta como soube durante todo o tempo sobre a relação paralela entre ele e sua prima Saiko.
Com um clima tenso de rancores pede a separação e tenta rebaixar a figura de Josuke recriminando sua falta de virilidade e sua imagem desinteressante.
Na terceira carta Saiko conta como viveu com remorso toda a relação oculta, mas se despede de Josuke com um olhar generoso.

Final.

A solidão permeia a ação, a sobrinha se afasta, a mulher se separa e a amante morre; num clima de insinuações e de sombras o silencio parece ser a única voz.
Cenas sutis, nuances, antiguidades e detalhes como o da teoria de Josuke quando diz para Saiko que cada um de nos carrega uma pequena serpente dentro, tingem as imagens discretas do amor aparentemente oculto. O não dito parece explodir no peito dos personagens.
O autor, Yasushi Inoue (1907-1991), graduado em estética e filosofia, estreou em 1949, com este livro sua longa trajetória literária.




sexta-feira, 22 de junho de 2018

O inferno de Dante.


A divina comedia. (o inferno).


A DIVINA COMEDIA de Dante Alighieri assim como o Quixote, a Ilíada ou a Odisséia fazem parte de um acervo necessário que todo bom leitor que queira entrar em contato com as grandes obras da historia precisa conhecer.
Tal vez o maior mérito do livro esteja na originalidade do tema, na métrica de seus versos, na musicalidade ou na afirmação do dialeto toscano, base da língua italiana,  como passível de possibilitar obras literárias - lembramos que até então às obras literárias eram escritas só em latim.
Mérito também na própria anedota, nos mitos, nas imagens que inspiraram tantos artistas e que povoaram a fantasia e a imaginação dos seus intermináveis leitores.
A repercussão da obra é tanta que o significado da palavra “dantesco”, por exemplo, ficou fixado há 700 anos, em todas as línguas, como sinônimo de algo descomunal.

O inferno.

“Ó, vós que entrais , abandonai toda esperança” (frase da entrada do inferno).
O próprio autor é o protagonista da sua obra, no inicio da narração ele se perde numa floresta encontra uma saída, mas é impedido de avançar numa montanha por três feras: um leopardo, um leão e uma loba.
Esta cena guarda toda uma simbologia: Domingos Van Erven interpreta que a floresta obscura estaria associada com a ignorância, (o pecado); a montanha a saída, o sol, a luz a ascensão espiritual e as feras: o leopardo, o leão e a loba com a incontinência (falta de controle ante o impulso), a violência e a fraude, forças que estariam impedindo a elevação.
Outros interpretes concordam com associar o leopardo com a incontinência (também entendida como tentação), mas interpretam  o leão e a loba como símbolos da soberba e da inveja.
Ainda outros interpretam estas três feras com a luxúria, o orgulho e a avareza.  Dorothy Sayers menciona que estas categorias do pecado estão relacionadas também com as três etapas da vida: luxuria com juventude, vaidade com os anos médios e avareza com a velhice.

A continuidade do enredo.

Prestes a desistir e voltar para a selva, Dante é surpreendido pelo espírito de Virgílio - poeta da antiguidade que ele admira - disposto a guiá-lo por um caminho alternativo (Virgílio foi chamado por Beatriz, paixão da infância de Dante, que o viu em apuros e decidiu ajudá-lo).
A presença do Dante no texto representaria ao homem, o poeta Virgilio, representaria à razão, e Beatriz a fé.
 O caminho proposto por Virgílio consiste em fazer uma viagem pelo centro da terra (reino dos mortos). A viagem começa nos portais do inferno, os protagonistas atravessariam o mundo subterrâneo até chegar aos pés do monte do purgatório. Dali, Virgílio guiaria Dante até as portas do céu. Dante então decide seguir Virgílio que o guia e protege por toda a longa jornada através dos nove círculos do inferno, mostrando-lhe onde são expurgados os diferentes pecados, o sofrimento dos condenados, os rios infernais, suas cidades, monstros e demônios, até chegar ao centro da terra, onde vive Lúcifer. Passando por Lúcifer, conseguem escapar do inferno por um caminho subterrâneo que leva ao outro lado da terra, e assim voltar a ver o céu e as estrelas.

Os círculos.

Dante cria um inferno em forma de cone invertido e dentro dele teríamos uma seria de círculos, estes correspondem a uma serie gradativa de nove espaços onde se pagam os pecados. A jerarquia deles corresponde com a menor e a maior gravidade dos atos, estes estão ligados com aqueles três princípios que encontramos quando citamos as feras. Do primeiro até o quinto circulo teríamos os incontinentes , neles entram os glutões e luxuriosos, a segunda etapa inclui do sexto até o oitavo, aqui estão os violentos , os irascíveis e rancorosos, no nono se encontram os que mentem, que traem, os feiticeiros e os bajuladores.

Historias.

No segundo circulo do inferno Dante coloca também os adúlteros, entre os que se encontram neste circulo temos os amantes Francisca e Paolo.
É importante assinalar que Dante funda o mito de Francisca com este relato e que esse mito inspirou muitos artistas ao longo da historia.
 Francisca de Rimini tinha uma paixão secreta pelo cunhado, eles costumavam passar as tardes compartilhando leituras e cultivando um amor sublimado.
Um bom dia Francisca e Paolo estavam lendo a historia de Lancelot com a reina Ginevra (esposa do rei Arthur) . No romance Lancelot também mantinha um amor segredo e proibido.
No livro a conselho de um amigo do casal chamado Galeoto,  Ginevra oferece a boca para ser beijada - a leitura foi para Francisca e Paolo o que Galeoto foi para Ginevra e Lancelot. Os amantes se aproximam e no momento crucial aparece o marido, os surpreende e com sua espada mata os dois.                                                                                                            

As historias e os mitos.

Um dos juízes do inferno é Minos, exerce a missão de condenar os recém chegados; ele ouve a confissão dos mortos e os destina a um dos nove círculos, faz isso enrolando sua enorme cauda envolta do corpo, cada volta representa um círculo abaixo.
Até Ulises aparece em um dos círculos do inferno, mas Dante muda o percurso da historia e faz que o herói não volte aos braços de Penélope e sim avance no mar desconhecido.
As artes se inspiraram em Dante.
Dore, Bottichelli, William Blake e Dali foram alguns dos artistas que retrataram a Divina Comedia . Na escultura, a Divina Comedia inspirou Rodin, na música, Franz Liszt, dentre outros.
Aqui um link para assistir as ilustrações de Botticelli.

Final.

Dante tem uma imaginação muito fecunda e um conhecimento em um uso da mitologia que potencializa seus versos. Em determinado momento, quando encontra um grupo de gigantes até inventa uma língua imaginada para dar uma amostra de sua língua estranha: “Raphèl maì amècche zabì almi” (isto ocorre
no canto XXXI do inferno. v.68).
As imagens são por momentos aterradoras e parecem estar querendo atemorizar aos pecadores com os tormentos descritos,  torturas são citadas com requintes de crueldade : lembramos a do boi siciliano, de bronze, que parecia expressar sua dor aos mugidos. Tratava-se, na realidade, de um instrumento de tortura que, sendo aquecido, assava a vítima dentro
dele, e seus gritos de desespero davam tal impressão. Os feiticeiros e adivinhos (os áugures), sofreram a punição de ter o rosto sempre voltado para as costas, obrigados por isso a andar para trás.
As imagens sensoriais nos remetem (segundo Borges) aos martírios pintados pelo Bosco no  painel dos infernos.
O chocante das imagens produziram rechaços históricos, tal vez o mais conhecido seja o de Friedrich Nietzsche , ele falou que Dante Alighieri foi: “Uma hiena que escreveu poesia nas tumbas”.
Deixo aqui esta resenha como uma motivação para novos leitores se encorajem a mergulhar em esta obra incrível.
Finalmente deixo aqui um link para assistir o Borges comentado o livro de Dante.
https://youtu.be/AHBYA7-ldQc
e aqui outro para ouvir a Sinfonia de Frank Liszt.
https://youtu.be/lEK1ojgQ1-4


 Nota das imagens:

 1)Willian Dyce.
2) Dore.
3)Fleubach
4) Botgicelli
5) Dore.
6)Bosco