sábado, 7 de novembro de 2015

Conto de inverno - Shakespeare.

Shakespeare.
O conteúdo de este artigo descreve a peça de teatro “Conto de inverno” de William Shakespeare, ao mesmo tempo  em que se propõe aproximar as pessoas ,sem habito de leitura,  na  experiência  de autores da literatura clássica.
O intuito é de tentar desfazer qualquer distancia que possa inibir a aproximação com a Arte Maior, com a possibilidade de ler um livro de um autor clássico, por exemplo, por entender que para essa tarefa se precisaria de uma preparação superior, quase sempre tida como inalcançável.
Pensemos que a apreciação artística pode ser feita por pessoas com algum grau de sensibilidade sejam elas educadas formalmente ou sejam  pessoas  mais  ingênuas; o principal  que se requer para contemplar seria ter uma atitude aberta e uma boa disposição;  na realidade até crianças podem apreciar a arte,  embora que esta percepção se dei de um modo instintivo, se a pessoa não e superficial , se ela consegue lidar com a obra no seu sentido essencial  um olhar verdadeiro  pode revelar a beleza da obra.
O acessível do conto.



É preciso colocar que o Shakespeare é um autor popular, inteligente, bem humorado, poético, falo isso porque existe sobre ele uma espécie de aureola de gênio que ajuda a criar uma espécie de coibição que  por um lado causa um fascínio mas que ao mesmo tempo acaba produzindo uma distancia infranqueável  com o leitor em potencial.
Shakespeare ao longo da sua obra toca em assuntos bem vitais: o ciúme (em Otelo e nos Contos de inverno), a traição (em Hamlet), a avareza humana (no Mercador de Veneza), o capricho feminino (na Megera Indomável), o amor e a morte (em Romeu e Julieta).
Como vemos são temas que fazem parte de situações humanas completamente corriqueiras que a todos nos toca viver, assim que desde a perspectiva do tema que ele aborda podemos afirmar que o autor fala sobre assuntos bem acessíveis.
Ele é um autor que ao mesmo tempo que escreve idéias originais, por momentos recria relatos da tradição literária, temas  que fazem parte da historia e que os podemos rastrear nos Contos das mil e uma Noites, no Decamerão de Boccaccio, assuntos  recorrentes da mitologia e de fatos históricos da linhagem grega e romana; então, ao mesmo tempo em que ele  descreve situações humanas compreensíveis,  ele atualiza lendas ou relatos da tradição assim que isto também colabora para afirmar que a matéria da sua literatura é simples  no sentido que se trata de temas extraídos de fabulas da memória social.
O limite.
O estilo que ele escolhe pode ser um empecilho no sentido que pode ser interpretado como retórico ou pouco espontâneo para os dias de hoje, porque, venhamos e convenhamos,  ninguém fala ou escreve mais como se falava ou se escrevia na Inglaterra nos anos de 1600, escolho uma fala ao azar para exemplificar a questão: ”Claro, é o que farei  vós me ajudareis a metê-lo dentro da terra”.
Claro que hoje esta fala se escreveria de outro modo, mas se o leitor conseguir aceitar o estilo depois algumas paginas em contato com a narração, o modo narrativo  passa a ser acolhido como natural .
Outro obstáculo pode ser a quantidade de personagens usados no conto, 21 em total o que realmente dificulta a reconstrução visual da cena descrita no relato.
Sugiro que para poder guardar na memória os nomes e o papel que desenvolvem na trama pode se recorrer a anotações complementares ou a fixar alguns nomes claves, por exemplo, seria bom identificar os seis personagens centrais ,  conservar-los na memória para se  situar no percurso do argumento: guardar  o nome do Rei da Sicília, Leontes e o da Rainha Herminone casada com ele e acusada de infidelidade, de Camilo amigo e mordomo de Leontes, de Polixenes , amigo de Leontes rei da Boêmia , acusado de ter um caso com Herminone,Perdita , filha abandonada por Leontes e seu namorado o filho de Polixenes,Florisel  , e o da  Paulina  empregada do Leontes e amiga pessoal de sua esposa Herminone.
Tipos de leitura.
Mais um comentário: quando nos deparamos com um grande escritor ele, seguramente, permite dois tipos de leitura, uma um pouco mais superficial onde o enredo aparece como centro narrativo y  também comporta uma leitura mais detalhada onde podemos apreciar imagens ou citações que
aparecem nas entrelinhas, por exemplo tomamos um trecho do final do livro, parte da fala da Perdita para seu namorado, quando ela estava procurando fazer um buque de flores para ele e ainda não tinha encontrado as que elas desejava...”Ó Proserpina, onde estão agora as flores que em teu pavor deixaste cair do carro do Plutão? ...As violetas escuras, porém mais deliciosas de que as pálpebras de Juno ou o alento de Citera!As pálidas primaveras que morrem virgens , antes que hajam podido contemplar o brilhante Febo em toda sua força: é um mal ao qual estão muito sujeitas as donzelas!....”
Dentro do contexto da narração aqui nos encontramos com uma declaração onde a personagem Perdita procura juntar algumas flores para seu namorado, agora como estamos na frente de uma literatura maior, ela apresenta imagens e referencias em uma opulência sinfônica; cabe ao leitor tentar se adentrar nos símbolos e nas representações envolvidas no drama...Aqui por exemplo  temos a citação de Proserpina que deixou cair as flores do carro do Plutão, se trata do mito de Proserpina , ela (dentro da mitologia) era uma ninfa filha de Jupiter (Pai de todos os Deuses) e de Ceres (deusa da fecundidade e das colheitas).
Aqui o mito ao que faz referencia o texto: Plutão (Deus dos mortos) se apaixonou por Proserpina, olho pra ela e em quanto ela estava colhendo flores  ele a raptou ;  a imagem citada por Shakespeare alude a hora do arrebatamento de Proserpina  imaginando que ela teria deixar caído flores do carro do seu algoz.
Continua com a frase citando a Juno  (Deusa do matrimonio)  dizendo que tinha as pálpebras mas deliciosas que a Deusa ou o alento de Citera (um dos nomes de Afrodite- Deusa da beleza).Termina a frase citando a Febo (o sol) .
 A passagem toda dentro deste contexto ganha  outra dimensão. No total  vemos que ao conhecermos todos estes elementos e símbolos a leitura da cena se realiza em toda sua beleza.
Dicas de leitura.
Não temos nenhuma presa, este tipo de atividade não tem porque ser feita com velocidade, por isso convém ter uma leitura inicial, seguramente orientada pelas primeiras impressões e pela curiosidade do desenlace do argumento e uma segunda leitura muito mais pausada  para realmente poder ir  detectando as perolas que fazem parte da beleza narrativa fora o que chamamos da historia.
A obra em si: Contos de inverno.
Resumem.
Os elementos dramáticos que alimentam a narração são basicamente as conseqüências produzidas pelos sentimentos de ciúmes doentios do protagonista, o Rei provoca com isso, dentro da trama, a destruição da sua família e todo o desenlace se desenvolve no sentido de reparar o dano produzido pela violência inicial, a queda se transforma em final feliz.
A obra se divide em duas partes: na primeira o Rei acusa a sua esposa de infidelidade e rechaça sua filha por entender que ela é produto de uma relação extraconjugal. Na segunda parte (que ocorre 16 anos depois) ele percebe sua postura infundada, sua filha retorna ao lar,  e  com este fato e mais a volta da sua esposa se re-estabelece a harmonia na família real.
O estilo.
A primeira impressão que nos chega quando lemos Shakespeare é a que nos deixa sua inteligência e a sua polidez, sua naturalidade e a distinção (dois valores que o Proust admirava).
Aqui  mostro duas reflexões suas , para  poder analisar a textura do relato,os dois primeiros exemplos falando sobre o mundo feminino com humor e o terceiro ,  um pensamento, na ocasião acusando a um mordomo de não tomar partido, de ficar encima do muro em relação a uma determinada situação:
“Se o desespero atacasse todos aqueles que possuem esposas revoltadas, a décima parte da Humanidade teria que enforcar-se”.
O Rei manda um dos seus empregados a fazer sua mulher calar a boca e ele responde:  “Enforcai todos os maridos que são incapazes de impor silencio às suas mulheres que os sobrara um só súbdito”.
O seu mordomo não toma partido em uma situação e o Rei comenta: ”Não passas de um
contemporizador, que vendo com seus olhos ao mesmo tempo o bem e o mal, inclina-se em direção de ambos”.
Outro recurso de estilo que utiliza o autor é o de poetizar o pulo no tempo. No Ato lV Shakespeare dá um salto narrativo de 16 anos e para introduzir esta transposição cria uma narração, nos moldes do Coro do teatro grego, o Tempo personificado fala do seguinte modo: “Eu que agrado a alguns, que ponho todos a prova, que sou ao mesmo tempo a alegria e o terror dos bons e dois maus, que faço e desfaço o erro, convém-me  agora em minha qualidade de Tempo, usar minhas asas”.
Ele poderia apenas colocar um frase indicando a passagem dos anos mais recriou a toda uma frase poética para descrever o que dito de outro modo seria apenas algo meramente indicador.
Mais uma perola uma reflexão da Rainha ao ser acusada pelo Rei: ”Em quanto à traição, não lhe conheço o sabor, embora me seja servida como um prato a que deva provar.”
Situação onde se desenvolve a cena.
Embora para a trama seja irrelevante,  a cena ocorre entre os reinos de Sicilia, ilha do sul de Itália, e Boêmia, na atual República Checa, a que se atribui erroneamente ter costa (detalhe que já aparece em Pandosto obra da qual mais tarde falaremos).

O tema do mágico no Conto.
No conto acontecem muitas coisas da ordem do fantástico, em determinado momento, por exemplo, o Rei recorre ao Oráculo de Delfos para dirimir o fato central da peça que era  o de conhecer se suas acusações de traição contra sua esposa, a Rainha, tinham fundamento.
O oráculo respondeu que ela era inocente e isto foi um dos argumentos para que ele sossegasse na sua obsessão doentia.
A resposta do oráculo foi a seguinte: “Hermione é casta; Polixenes inocente; Camilo um súbdito leal; Leontes um tirano ciumento; sua inocente criança, concebida legitimamente; e o rei viverá sem herdeiro, se o que esta perdido na for encontrado”.
Consultar ao oráculo  era uma tradição entre os povos da antiguidade, se acreditava que em Delfos (uma ilha grega ) existiam sacerdotes que invocavam ao Deus Apolo e que poderiam predisser o futuro ou esclarecer com autoridade qualquer tipo de pleito, o oráculo de Delfos foi considerado como um centro religioso no mundo helênico.
Em outro momento do conto um personagem sofre um sonho premonitório e o sonho se cumpre,isto ocorre quando dois empregados do Rei estão levando á criança para ser abandonada em nas costas de um pais vizinho, a noite anterior o personagem sonha com a mãe da criança que diz pra ele, que por estar cometendo este desígnio nunca mais voltara a ver a sua esposa e sugere que coloque o nome de Perdita na criança que será abandonada.
Após esta  cena , quando o empregado do Rei abandona a criança um urso o mata e o mar engole o barco onde tinha o outro empregado ao qual tinham encomendado a fatídica missão ,  os dois fatos curiosos são a existência de um urso por aqueles territórios (não existem ursos perto da Itália) e o segundo que na narração o mar é descrito como capaz de tomar uma decisão, a natureza  viva, no caso, se vinga do ocorrido.
Outra situação fantástica se poderia considerar o caso de que um urso come a um dos mensageiros que abandonam a criança, os ursos europeus não são carnívoros.
O fato mais mágico da narração porem acontece quando no final do Conto de Inverno a Rainha petrificada em uma estatua cobra vida, vamos a falar mais tarde sobre este caso quando falemos dos mitos presentes no livro.
Desdobramento.
Lendo “Contos de Inverno” me deparo em um determinado momento, com a menção do Giuliano Romano, justamente na cena que se encontra a estatua da Rainha e esta cobra vida; procuro saber quem ele é e descubro a um pintor formidável que entre outras obras que realizou ilustrou poemas eróticos do Pietro Aretino na Veneza de fines do  ano de 1400...
Quando acontecem estes “desvios” sinto como se a gente esta em uma viagem e começa a descobrir novos caminhos a partir de que vai se deparando com novos horizontes..aqui um poema do Pietro Aretino:- "Amemo-nos sem taça nem medida uma vez que para amar nascemos, adora meu pássaro qual eu teu ninho pois sem eles ¿valeria algo a vida? 
E se embora logo sem eles fosse possível amar, 
Bem querido, ao berros pediria, oh Bem perdido para seguir gozando ainda. Gozemos qual o fez regiamente o primeiro casal de mortais bem aconselhados pela serpente. 
Que nos perderam por amar, diz a blasfêmia , são ditos tais que só a quem não ama satisfaze. -Mas cala e ama também, ¡castigo! 
Cala e me enfia até as bandeiras os juízes e os testemunhas do amor "

A presença dos mitos.
Todo o tempo no texto aparecem pedidos ou  chamados  do tipo:” Que Júpiter  não o permita”, ou:  “A cólera de Apolo”...
Todo escritor conhece ou é seduzido pelas historias narradas nos mitos, eles são lendas reais ou criadas que povoam a imaginação dos povos desde a antiguidade.
O autor menciona o mito bíblico de Adan e Eva quando fala no primeiro ato sobre o amor.
Cita o Basilisco, comenta, em determinado momento  que uma das personagens  não tem olhar de Basilisco, o mito fala sobre um ser que mata com a mirada.
Um das figuras dramáticas que aparece no IV ato é o Autólico, figura que leva o nome de um personagem  da mitologia Greco-romana , sinônimo do ladrão e embusteiro, no conto , filho de Mercúrio (Deus Hermes na tradição grega), ele se  faz passar por outro, se apresenta como um inocente que teria sido roubado (culpa a ele mesmo- Tautólico) e na sua própria descrição cita entre os ofícios que teria realizado o de manipulador de marionetes representando a “parábola do filho prodigo”, assim podemos observar, alem do próprio personagem a presença da lenda bíblica do evangelho de São Lucas. 
Mais um exemplo da presença dos mitos no relato ocorre quando o príncipe quer justificar para Perdita que ele poderia passar a  ser um simples pastor:”Os próprios deuses. Humilhando a própria divindade diante do amor, tomaram a forma de animais. Jupiter se transformou em touro e mugiu, o verde Netuno, carneiro e baliu; e o deus dos trajes de fogo, o dourado Apolo, tornou-se um simples pastor, como eu apareço agora”.
Aqui o Shakespeare menciona o mito da fundação de Europa quando Jupiter se metamorfoseia em touro para raptar a Helena e, em relação ao mito do Netuno e Apolo que desafiaram ao seu pai e foram condenados a serem carneiro e pastor respectivamente posso comentar que não encontrei referencias nas fontes das  transformação de Netuno, sim do Apolo que foi condenado a viver entre os mortais como pastor, no caso de Netuno na procura da autenticidade da descrição do Shakespeare  me deparei com outras historia.
Busquei, fui atrás do mito dele e encontro uma historia de amor e uma serie de pinturas magníficas inspiradas na relação dele com Anfitrite,aqui o resultado, a historia: Um dia Netuno viu a ninfa aquática Anfitrite dançando na ilha de Naxos e se apaixonou por ela. Rapidamente lê pediu que  casasse com ele, mas ela se negou. Sem se desanimar pelo rechaço de Anfitrite, Netuno enviou um do seus criados, um golfinho para a buscar-la. Como recompensa por encontrar-la e regressar com Anfitrite, Netuno imortalizou ao golfinho e o colocou no céu em forma de constelação.
Não sei avaliar como Shakespeare colocou a Netuno metamorfoseado de carneiro quando isso não aconteceu no relato original do mito, imagino que pode se interpretar que ao invés de carneiro seja um cavalo, falo isto porque os golfinhos eram considerados como cavalos marinhos, daí que pode ser que o mensageiro que é citado no mito possa ser interpretado como um disfarce do próprio Netuno.

No final do livro, mais uma presença mítica, Shakespeare cita, indiretamente, o mito de Pigmalion quando a estatua da Rainha cobra vida, lembrando que no mito original o artista cria uma obra da qual se apaixona e esta ganha vida própria.
Origem da obra
Cada autor tem uma linhagem, antepassados e cada relato pode  ser uma adaptação ou uma consciência de outro que a sua vez esta inspirado em um outro anterior e assim até o infinito.
A característica do Conto de inverno, especificamente é ter podido reproduzir o ambiente das narrações contadas oralmente  ao pé de uma lareira.
De fato a obra foi inspirada em outro relato, Shakespeare publico os contos de inverno em 1611 , 30 anos antes Greene publico o conto Pandosto, este a sua vez,de acordo com algumas fontes, teria sido inspirado em um dos contos de Cantebury de Chaucer de 1386  e também no relato intitulado Amadís de Grecia (encontrei também o nome de Amadís de Gaula)  de Feliciano da Silva (1530) de mais de 200 anos antes e este por sua vez  herdeiro do Decamerão de Bocaccio (1300).
Na minha busca pela ratificação da genealogia do conto, procurei confirmar se era mesmo herdeira de outras obras pretéritas, não encontrei nos contos de Cantebury  em nenhum relato que toque no mesmo tema  do ciúmes, do abandono de uma criança que retorna a sua origem; em relação ao Amadís de Grecia apenas achei o tema indireto relacionado com um bebe abandonado em um barco que depois de adulto percorre o mundo na busca da sua origem.
Em Pandosto, triunfo do tempo, de Robert Greene sim encontramos muitos elementos similares a partir dos quais podemos afirmar que Shakespeare se inspira para escrever esta obra, o tema dos ciúmes,  o próprio lugar (Sicilia e Boemia) onde se situa a obra , abandonos. Não podemos dizer que se trata de um plagio porque o tema e o cenário foi adaptado, inclusive porque se pode reescrever um conto ou uma historia popular com outro sentido sem que isto coloque ao autor sobre na possibilidade ou na  acusação de estar realizando uma copia imitação , podemos falar sim que estamos na frente de uma adaptação.
Reflexão final sobre  o conto
Estamos na frente de uma obra onde se sucedem loucuras, tormentas, oráculos, episódios sobrenaturais, Shakespeare reedita uma historia da tradição, mas, na realidade,  a historia em todo grande autor  é apenas um pano de fundo para ele desenvolver idéias filosóficas,  pensamentos, observações da vida, em poucas palavras um pretexto para poetizar um relato.
Uma das obras mais belas da historia da literatura, guarda um caráter clássico é fabulista , no sentido de se propor , ao mesmo tempo, ter uma finalidade didática e artística.









 


sábado, 26 de setembro de 2015

Viagem ao fim da noite

Celine

Viagem ao fim da noite

Existem laços, afinidades, canais de diálogo entre Celine, Henry Miller, Scott Fitzgerald, Roberto Arlt, Júlio Cortazar,Dostoievsky, Antón Chéjov e Paul Auster... Na literatura, fora as épocas, os países, existe uma semelhança que supera tudo, que transcende os movimentos, as escolas... Estou falando de uma preferência estética, de um o modo de pensar, de um modo de ver o mundo, de uma perspectiva e de um modo de escrever esse pensamento....Os  escritores citados tem um propósito claro: mergulhar  no estilo realista, (embora seja isto algo difícil de definir); estou falando de um tipo de estética que se propõe por um lado escrever como se fala coloquialmente e ao mesmo tempo, um estilo que tenta dizer as coisas com a maior sinceridade possível; o resultado, quando se trata de um pensador-poeta é muito bombástico.
Como proba de algumas afinidades do estilo me lembro de uma frase de Henry Miller falado sobre a beleza feminina quando ele afirma que existe uma “aristocracia das coxas” e depois encontro no Celine (seu mestre-inspirador) outra frase similar em consonância com esta ideia na parte do romance em que o protagonista se apaixonou pela Molly “A verdadeira aristocracia humana, digam o que disserem, são as pernas que a conferem, não tem talvez”.
Todos os escritores que citei têm um tipo de escrita que levam ao leitor a entrar em contato com uma autenticidade, a mostrar a vida de verdade, como ela transcorre de fato e assim nos aproximam a perceber quais seriam os olhares mais lúcidos sobre o que esta ocorrendo na nossa frente.
Na medida em que lemos nos deparamos com submundos arrepiantes com loucura, doença (similares aos do universo dos romances de Dostoiévski), ao transcorrer das paginas percebemos como na narração se alternam linhas descritivas do roteiro (o argumento em si) com chutes na bunda do mundo oficial (do senso mundano, dos valores, etc) e com traços sobre o que podemos chamar de viver no meio da lixeira da existência humana.
Na época do Cervantes os romances se dividiam em dois tipos, se considerava que existiam os relatos que eram considerados para entreter e os chamados didáticos (as fabulas, por exemplo, eram entendidos deste ultimo modo); Se tentássemos qualificar este livro do Celine a partir de esse principio perceberíamos que ele foge completamente desta dicotomia. Celine nos convida a colocar-nos na perspectiva  que podemos  chamar de uma ficção realista nua e crua ao mesmo tempo vemos que se trata de um tipo de literatura que acaba produzindo no leitor um olhar transformador sobre o que é o mundo, realmente e algo inspirador.

O Livro.

Começa como uma metralhadora atirando contra os franceses e contra todo o mundo.
Verdadeiros aforismos se alternam com uma descrição realista do momento duro e difícil que o protagonista esta atravessando: “É difícil chegar ao essencial, mesmo no que nos diz respeito à guerra, a fantasia resiste muito tempo. Os gatos ameaçados demais pelo fogo acabam mesmo é se jogando n’agua”.
Ou quando descreve ao povo Frances: “É mentira! A raça, o que você chama de raça, não passa dessa grande corja de fodidos de minha espécie, catarrentos, pulguentos, espezinhados, que vieram parar aqui perseguidos pela fome, pela peste, pelas doenças e pelo frio, os vencidos dos quatro cantos do mundo. Não podiam ir mais longe por causa do mar. A França é isso e os franceses são isso”.
Ou quando descreve a existência humana: “Quando não se tem imaginação morrer não é nada, quando se tem morrer é demais”.

O texto.

O relato conta suas penúrias do protagonista, Ferndinand Bardamu, um jovem estudante de medicina que se apresenta para combater na primeira guerra mundial, o romance narra o percurso que vai da experiência crua da guerra, mortes, dureza até o momento em que, por ter sofrido um ferimento em combate, retoma sua vida em Paris, na sua dura experiência na guerra conhece a seu amigo Robinson.
Em um hospital em Paris começa uma relação com a enfermeira Lola, uma americana com a qual se envolve amorosamente, Ferdinand (o protagonista) sofre uma alucinação persecutória no meio de um restaurante e é internado e uma clinica onde cuidam de pessoas com problemas mentais; desenvolve alguns recursos para sobreviver, para afastar o medo, aqui um dos relatos: “Quando somos fracos, o que dá força e despojar aos homens que mais tememos do prestígio que ainda tendemos a atribuir-lhes”.
Seu namoro com Lola fracassa quando ela percebe uma falta de heroísmo patriótico, Ela diz: “Mas Ferdinand é impossível recusar a guerra, só os loucos e cobardes que poderiam fazê-lo” ; ele lê responde : 'Então vivam os loucos e cobardes ou melhor , sobrevivam os loucos e covardes!!! “.
Celine ataca fortemente todo o establishment o chamando de covarde, de corrupto, falando  que o Poder só elogia ao homem comum quando esta prestes a usar-lo, quando o quer manipular.
O personagem finalmente recebe alguma liberdade e começa a freqüentar Paris, se apaixona por uma mulher de nome Musyne , decide morar junto com ela em um bairro no subúrbio de Paris.
Musyne o abandona e ele voltou a ser internado em um hospital para feridos de guerra.
O autor alterna fatos com pensamentos, em um deles nos comenta sobre as classes sociais- “Existem para os pobres neste mundo duas grandes maneiras de morrer , seja pela indiferença de seus semelhantes em tempos de paz, seja pela paixão homicida dos mesmos em tempos de guerra”.
Relata uma última aventura no hospital, um pedido de grana a familiares de pessoas que morreram na guerra; o clima é de falta de princípios éticos, de lei da selva, de desolação.
Da tranqüila vida no Hospital Celine descreve no seu romance como o protagonista passa por uma aventura aterrorizante, com a idéia de fugir da França e da guerra Ferndinand Bardamu, decide embarcar para África.
Resolve sair do país, então, se embarca em um navio até África, padece intimidações por parte da tripulação até o ponto de sofrer uma ameaça de morte, o clima esquenta, corre risco de vida; no final finge certa afinidade com os outros embarcados, disfarça, cria um discurso  patriótico para se salvar e consegue fugir de que o joguem ao mar.
Chega à África, consegue um trabalho em um lugar perdido no meio da selva, chega ao sitio depois de dias navegando, percebe que em aquele “fim do mundo” só o espera a morte, sua casa prende fogo, foge para uma cidade... Ríspido, duro com si mesmo e com o mundo, quase sempre hostil, às vezes se detém e repara a natureza como acontece nesta descrição de um por de sol na selva, aqui um dos seus relatos poéticos no meio daquela paisagem: “Uma imensa ostentação. Só que era uma muita admiração para um só homem. O céu se exibia todo salpicado de um lado a outro de escarlate em delírio, e depois o verde explodia no meio das  árvores e subia a terra em rastros trêmulos até as primeiras estrelas. Depois disso, o cinzento se apoderava de todo e em seguida o vermelho de novo, mais ai desbotado, o vermelho, e por pouco tempo. Todas as cores voltavam a cair, molambentas, deformadas sobre a floresta, como ouropéis  depois da centésima representação de um espetáculo.  Todo dia a seis em ponto que isso acontecia”.
Fica doente na sua estadia na África e é vendido como “escravo”, entra em um navio como remador, chega a New York, foge da tripulação... Se instala em um hotel espelunca, reencontra a Lola (agora instalada como madame em um bairro chic da cidade) acaba protagonizando uma cena grotesca compartilhando um chã com ela (sua ex-namorada) e suas amigas, acaba pedindo uma grana para se mandar de New York e se estabelece em Detroit.
Arruma um trabalho na Ford, acontece um fato engraçado, na entrevista para ser admitido ele confessa ao funcionário ter estudado medicina e o funcionário responde: “Não precisamos de imaginativos na nossa fabrica. É de chimpanzés que a gente precisa...”.
Seu trabalho dura pouco, nessa estadia em Detroit reencontra seu amigo Robinson, parceiro de outras aventuras e conhece a uma prostituta que acaba sendo uma das personagens femininas mais bonitas do romance: Molly. Celine comenta que ela era foi a primeira mulher que teve uma preocupação amorosa real para com ele,  para descrever ela comenta : “ Era sincera demais para dizer coisas de uma tristeza”.
O protagonista confessa sua natureza evasiva e lasciva, sua cupidez... ”acabei, por lhe confessar a mania que me atormentava de dar um fora de todo lugar”...”Eu tinha uma alma indecente como uma braguilha”.
Ferdinand volta para Paris, se gradua em medicina... Trabalha de forma independente em uma cidadezinha chamada Rancy, se reencontra com seu amigo Robinson.
Assiste pessoas doentes e acaba lidando com a dor e a impotência geradas pelo exercício da sua profissão; se depara com uma cena de violência no seu cotidiano que vai refletir no desenlace do livro: uma tentativa de homicídio envolvendo a nora de uma velinha, seu marido e o seu amigo Robinson contratado para assassinar a anciã (a velha mãe Henrouille), a tentativa fracassa e seu amigo Robinson acaba se ferindo.
Capítulos depois a nora consegue envenenar seu marido e se desfazer da velha e do Robinson enviando eles para se instalar nos fundos de uma igreja em Toulouse.
Aproveito para citar mais algumas da suas frases: “Viver na austeridade, que maluquice! A vida é uma sala de aula cujo bedel é o tédio, que aliás está ali o tempo todo a nos espiar, temos que dar a impressão de quem esta fazendo, custe o que custar, algo apaixonante, se não ele chega e devora o cérebro”.  
Aqui mais uma cita sobre seu pensamento: “É melhor não ficar se iludindo, as pessoas não têm para se dizer só falam das suas próprias dores as delas, de cada uma, é claro. Cada um por si, a terra por todos. Tentam se livrar da sua dor, em cima do outro, no momento do amor, mas aí não funciona e por mais que façam guardam- na inteirinha a sua dor, e recomeçam,  tentam mais uma vez dar-lhe um fim “ A senhorita é bonita “, dizem. E a vida recomeça, até a próxima  em que se tentara de novo o pequeno truque. : “ A senhorita é muito bonita”.
E depois desse meio tempo a se gabarem de ter conseguido se livrar da sua dor, mas todos sabem muito bem não é mesmo que não é verdade de jeito nenhum  e que pura e simplesmente a guardamos inteira para nós.  Como vamos ficando cada vez mais feios e repugnantes  com essa brincadeira, ao envelhecer-nos não podemos sequer disfarçá-la, nossa dor,  nossa falência, e acabamos ficando com o rosto todo tomado por essa careta abominável. Que leva seus vinte anos, seus trinta anos e mais para afinal lhe subir de barriga ao rosto. É para isso que serve, só para isso, um homem, uma careta, que leda uma vida para fabricar, e ainda assim nem sempre consegue concluí-la de tal forma ela é pesada e complicada a careta que teria de fazer para expressar toda a sua verdadeira alma sem nada perder”.

Final

O protagonista acaba assumindo a direção de uma clinica de repouso psiquiátrico, seu amigo Robinson termina assassinando a aquela anciã que tinha viajado com ele a Toulouse , estreita seu namoro com Madelon (filha e parceira no seu trabalho na igreja).
Robinson decide romper a relação e trabalhar com o Ferndinand, Madelon o procura, Ferdinand a expulsa do hospício de modo agressivo, para se reconciliar convida o casal para um passeio de fim de semana.
Ferndinand com sua namorada Sophie, uma enfermeira que também trabalhava na clinica e o casal de Robinson e Madelon saem em programa de reconciliação, o plano da errado.
Bate boca fatal no taxi de volta para casa onde participam os quatro: o protagonista, Ferndinand , seu amigo (Robinson) , sua namorada Madelon e a namorada do Ferdinand (Sophie).
Cena violentíssima que dura algumas paginas onde se cruzam acusações e xingamentos de uma violência verbal e psicológica poucas vezes vista na  historia de literatura.
O casal de amigos do Ferdinand briga e se acusa mutuamente, Madelon acaba puxando uma arma e dispara contra seu namorado, dentro do carro...os disparos produzem a morte do Robinson...Epilogo e fim...

Pensamento

Encontrei um texto de Schopenhauer que me parece em concordância com o se poderia extrair com pensamento de Celne:
" O Destino Mais Feliz — embora não seja o mais brilhante
Não há muito a se ganhar com o mundo; a miséria e a dor preenchem-no; se um homem escapar-lhes, o tédio estará à espreita em cada canto. Ademais, são a baixeza e a perversidade que governam o mundo, e a tolice predomina. O destino é cruel e a humanidade é desprezível. Em um mundo dessa natureza, o indivíduo rico em si mesmo é como uma habitação iluminada, quente e alegre em meio à neve e ao gelo de uma noite de dezembro. Por conseguinte, o destino mais afortunado nesta terra é, sem dúvida, possuir uma individualidade distinta e rica, e, particularmente, bons dotes intelectuais; esse é o destino mais feliz, embora talvez não seja, no fim, o mais brilhante;".
Conclusões

No prefacio da segunda edição o autor confessa arrependido de ter escrito porque o livro deu lugar a muitas acusações e interpretações errôneas e fala que se não fosse pela grana que o livro promete lê dar sumiria do mundo.
Viagem ao fim da noite é um livro que nos convida a olhar a realidade de um modo niilista e pessimista no sentido de mostrar uma decepção selvagem em relação ao que ocorre em volta, a ciência, os sentimentos  românticos, a piedade humana; tudo mostrado com um humor acido e muito cinismo sobre tudo quando fala da sociedade, das instituições e da vida em si. A metáfora que da o titulo ao livro “Viagem ao fim da Noite”, representa a viagem aos podres da alma humana, sua mesquinhez, a lei do mais forte, um livro intenso que mostra a condição humana na sua verdadeira baixeza, muitas pessoas acreditam que Celine seja apenas um ressentido, um fascista desalmado, mas a leitura deste livro mostra para quem quiser ter uma experiência forte , um mergulho profundo que o autor se encontra entre os maiores gênios do século XX.



quarta-feira, 26 de agosto de 2015

A fabulosa não historia de Tristram Shandy


Laurence Sterne

  A vida e as opiniões do cavalheiro Tristram Shandy publicada  entre 1760/  1767: 640 páginas no total, uma sátira, cheia de humor uma obra única de um dos artistas mais originais da historia.

O Estilo.

A primeira impressão que temos é a de um monologo interior sem conexão com um percurso linear, a narração é interrompida tudo o tempo por delírios ou divagações pessoais –Sterne insere textos, historias paralelas, reflexões filosóficas, sacadas humorísticas, sermões (ele era pastor)-não existe um argumento ao modo tradicional .
Uma erudição exacerbada e um jogo constante com o discurso “normal” do que entendemos por literatura nos colocam frente a um argumento que se apresenta como a falta de historia lineal.
Humorista nato introduz pensamentos irônicos sobre o tamanho do nariz, trocadilhos, insinuações... A idéia de que a literatura tenha uma ação, um percurso lineal, temporal e um fim não acontecem no livro... ao contrario temos um argumento onde as coisas não andam, a postura do autor aqui parece ser, justamente,  questionar essa perspectiva literária; o tempo, a ação não acontece, acontecem outras coisas paralelas , simultâneas como reflexões, historias  ou conversas que fazem que o tempo narrativo esteja parado.

O percurso ou o não percurso.

Assim com na vida real onde não existe uma coerência narrativa linear, os temas se superpõem no romance de Sterne e saltam de um a outro ora falando sobre uma ação, ora sobre a impressão que essa ação produz em um personagem, ora sobre as conseqüências dos fatos, lembranças..Joice e Cortazar duzentos anos depois tentariam produzir uma literatura onde também pudesse coexistir um mundo em movimento que não se encaixaria na narração literária passo a passo.

O leitor.

Como fica o leitor no meio de tudo isso? O que passa pela cabeça do leitor é uma expectativa sempre frustrada em relação com a realidade  que cria o autor , o leitor espera que possa ter continuidade mas o autor rompe constantemente com o horizonte de expectativas criadas por ele mesmo. Tristram Shandy cria as expectativas de uma novela comum; o resultado, ao contrario, é uma amalgama de consciência, inconsciência, associações, tudo com uma capacidade de imaginação formidável. O leitor espera que todos esses dados sejam retomados e recolhidos em um determinado momento dado, que eles respondam a uma finalidade concreta como acontece, por exemplo, no romance policial onde todos os elementos estão numa mesma direção.
O leitor ainda intenta -inconscientemente- compor e reconstruir o quebra-cabeças do Sterne, até perceber que a ação que se sucede na sua frente é o de menor importância, o que importa na realidade  é como ela se apresenta mais o que ela é.

O enredo.

Mais de 250 páginas, no começo, e o tempo narrativo parece parado no ponto que o protagonista vai nascer...ironias sobre a impossibilidade diálogo, elucubrações e sonhos , referencias literárias e míticas , disparates ,absurdos inimagináveis se sucedem  mais a narração não anda....como querendo se instalar em um outro tempo onde o que importa é outro percurso e já não a direção em frente mais um outro mundo que se abre.
Uma dissertação em forma de sermão sobre a consciência humana e uma reflexão sobre o tempo marcam na primeira parte da obra.
Deliberações sobre o nome da criança ocupam as páginas, um elogio sobre o descanso, o autor cita ao Cervantes: “Que as bênçãos de Deus, disse Sancho Pança, caiam sobre o homem que primeiro inventou esta coisa chamada sono-que cobre um homem inteiramente como um manto”.
Em determinado momento ele cita os parâmetros aristotélicos referidos a literatura para comparar com uma narração absurda inserida no romance onde um personagem, ele inventa um escritor chamado  Hafen Slawkenbergius que cria um conto onde um  individuo chega a um povoado montado em um burro e acaba sendo observado por algumas pessoas e sua nariz e colocada em suspeita por ser real o de madeira, o autor fictício brinca com as categorias literárias do Aristóteles: Epítase, Catástase...e coloca a sua narração absurda  como que estaria de acordo com as regras literárias do filosofo.
No meio de um romance louco que acontece dentro dessa historia absurda que ele inclui na narração, fora do humor o autor coloca este belíssimo poema
Ode
Soam fora do tom as notas do amor
Quando não é Julia a tocá-las
Em suas mãos a melodia
Logra infundir no coração tanta magia,
Que ao seu doce domínio os homens avassala
Oh Julia .
Em determinado momento o autor fala sobre a própria obra e comenta que passou dois capítulos para o personagem subir dois degraus e discuti com ele mesmo sobre se os homens devem seguir as regras ou as regras seguir aos homens....
No enredo nasce e morre um irmão do protagonista, o pai escreve um livro... Tudo dentro de uma narração sempre caótica, confusa... - O Sterne compara a o escritor com um militar-:  e fala “a vida de um escritor é um estado de composição como um estado de guerra,e suas provações  eram exatamente as de qualquer outro homem militar sobre a face da Terra- dependia tudo igualmente; muito menos do grau de seu INGENIO- que do grau de sua RESISTENCIA”.
O Romance tem outro romance dentro escrito pelo pai protagonista onde ele apresenta idéias mirabolantes sobre a temperatura do corpo humano ...ainda tem uma historia inteira contada dentro do romance aos modos da literatura “normal” , uma historia triste que fala sobre a vida do personagem Le Ferver , filho de um militar muito pobre que acaba sendo socorrido pelo pai do protagonista e acaba o contratando como tutor do protagonista.
O texto esta cheio de idéias poéticas, aqui vai uma muito bonita: "A Bela estatua continua encerrada no meio do bloco de mármore",
Laurence Sterne aqui falando sobre a criação, como se a obra já estivesse dentro da imaginação do artista mas ainda presa no seu lugar original ou como se dentro dos silêncios e dos sons já morassem as belas melodias.
Quase no final se introduz outra narração paralela que não se leva adiante chamada: “A historia do rei da Boêmia e seus sete castelos”.

Personagens.

Falando dos personagens do conto temos ao pai que dá o nome ao romance Shandy, o protagonista –narrador, a mãe (que não tem nome no livro inteiro), a parteira, o medico  (Dr Slop) , o irmão do pai (tio Toby), seu mordomo (Trim), no final a Sra Wadman e Bridge amantes deste dois últimos ...
Cada um deles tem seu momento na narração, no começo são os pais e no final o tio Toby e Trim junto com duas mulheres com as quais eles desenvolvem uma relação de sedução.
Tradução
Uma menção especial merece a edição em português  de José Paulo Paes onde existe um trabalho fabuloso de notas e especificações , mais de  450 verbetes esclarecendo idéias, imagens, nomes, lugares,  dificuldades para fazer a tradução como frases de duplo sentido  quase sempre de tom humorístico e de sarcasmo, citações de nomes  e de historias que mostram a grande erudição do autor.
Na página 366 aparece a palavra “goteira’ e o tradutor esclarece que alem do significado normal ela tem uma conotação sexual , servindo de sinônimo de jorro.
José Paulo Paes foi o responsável também da tradução de autores como Charles Dickens , Rilke, Joseph Conrad entre outros.

Humor.

 O livro incorpora o humor  e o sarcasmo como norte e tem tiradas geniais como a que comenta sobre uma espécie de Lei da Retaliação onde um dos personagens argumenta sobre a possibilidade de um neto querer namorar sua avo sob o pretexto de que o pai namorou a mãe dele.

Arte gráfica.
Mais uma vez queria me referir aos recursos estéticos do Sterne, neste caso os visuais, meia página com pontos, desenhos de mãos sinalizando, página inteira preta pensemos na época e vamos perceber o ousado da solução.

Obsessões.
Duas imagens perseguem o autor a do cavalo de pau e a do asno, a primeira como sinônimo da sua teimosia e a segunda como sinônimo do seu lado animal que ele tem que controlar.

A sexualidade.

As narrações sexuais abundam no texto, sejam de forma indireta ou sejam por descrições precisas e minuciosas .
Aqui um exemplo, o Tio Toby teve um romance com a Sra Wadman, na cena ela ajuda ele com uns curativos na perna: “Quanto mais ela esfregava , e mais demorados se tornavam os sues afagos –mais se ascendia o fogo na minhas veias- até que finalmente; em conseqüência de dois ou três afagos mais demorados que os anteriores- minha paixão chegou ao auge- eu lhe peguei a mão”.
A narrativa termina com a idéia fixa da viúva Wadman de tentar provar se seu possível futuro esposo , o tio Toby , tem uma ferida da virilha que o impedisse de ter um relacionamento conjugal com ela.

Final.

O livro não tem um final fechado nem aberto, não tem um fim nem o deixa sugerido de forma ambígua com idéias do tipo: Ele saiu pela porta e falou que voltaria, por exemplo.
Apenas termina com uma alusão ao touro como sinônimo da potencia sexual e o protagonista sai de cena em quanto assobia uma antiga melodia militar chamada Liliburlero.






sexta-feira, 17 de julho de 2015

A máscara.

 

Aqui estão reunidos vários conteúdos ligados ao tema da máscara 


recolhidos da literatura, a pintura ,o teatro e o cinema.



A máscara no seu significado imediato seria algo assim com um adereço

um disfarce apenas.


Pode ser associada a um embuste ou a uma ambiguidade.


No Brasil em alguns casos pode ser sinônimo de soberbia, a pessoa poder ser 

considerada "mascarada" se ela se comporta  com atitudes que detonem algum tipo de 

superioridade ou de auto valorização excedida do "permitido"..  
Quando falamos em desmascarar temos a ideia de mostrar a verdade por trás de um engano.

Para Borges era algo que ocultaria seguramente algo pior.   Scott Fitzgerald no livro 


Crack Up tinha falado sobre o tema dizendo que a vida é, obviamente, um processo de 


demolição, esta afirmação se refere á destruição das máscaras que temos que são 


devastadas com os anos e como elas caem e mostram, aos poucos, o verdadeiro da 


existência.



Em outra direção Cortazar termina o conto

 “O Perseguidor” 


com a morte do protagonista dizendo a frase “Faz-me uma 


máscara”, esta frase e tirada de um poema que persegue 


ao Perseguidor de Cortazar.O poema em questão é do 


Dylan Thomas chamado justamente “Faz-me uma 


máscara”.



O tema


O poema trata do tema de lidar com o social, da 

necessidade de preservar o interior e forjar um externo 


que possa lidar com o impessoal,

Aqui o poema:

“Oh, faz-me uma máscara e um muro que me esconda de teus espiões
Dos agudos olhos esmaltados e das garras que denunciam
O estupro e a rebeldia nos viveiros de meu rosto,

Uma mordaça de árvores mudas que me guarde da nudez dos inimigos,
Uma língua de baioneta nesse indefeso fragmento de oração,
Torna loquaz a minha boca, e que ela seja uma trombeta de mentiras
[soprada com doçura,
Dá-me as feições de um estúpido entalhado no carvalho e na velha
[armadura
Para escudar o cérebro brilhante e confundir os inquisidores,


E uma dor viúva manchada de lágrimas caídas das pestanas
Para dissimular a beladona e fazer com que os olhos secos percebam
Que outros atraiçoam as lamentosas mentiras de suas perdas
Através do arco dos lábios nus e do riso à socapa.”

Dylan Thomas .



Na primeira parte compara á máscara com um muro que me esconda do mundo hostil. 
Na segunda parte continua com a imagem mais agora incorpora a ideia de que essa máscara nos traía a sabedoria do silencio e as armas da fala.Destacamos a beleza da frase:” trombeta de mentiras , soprada com doçura” ..
Segue falando o poeta pedindo para ter um aspecto de tolo que esconda sua inteligência.Termina  dizendo que queria poder passar uma dor para ocultar o colírio , o brilho do olhar (bela dona)

E perceber a dor que outros traíram. simulando com seus risos desenhados (sorrisos ocultados pela manga da camisa ).



Julio Cortazar .

As palavras que usamos no nosso dia a dia não são mais que máscaras insuficientes.
(Historias de cronopios e de famas).

Toda diversão é como uma conciencia de máscara que acaba por animar-se e suplanta o rostro real. 

Dispongo de una serie de respuestas: para los días de sol, para las noches de tormenta... Una surtida colección de máscaras y detrás, creo, un agujero negro..

—Oh, las máscaras. Uno tiende siempre a pensar en el rostro que esconden, pero en realidad lo que cuenta es la máscara, que sea ésa y no otra. Dime qué máscara usas y te diré qué cara tienes. 

-Otra cosa más inmediata, menos copulable por la palabra, algo libre de tradición para que por fin lo que toda tradición enmascara surja como un alfanje de plutonio a través de un biombo lleno de historias pintadas

(Os prêmios).


Tal vez sea necesario el reposo, tal vez en algún momento el guitarrista azul deja caer el brazo y la boca sexual calla y se ahueca, entra en sí misma como horriblemente se ahueca y entra en sí mismo un guante abandonado en una cama. A esa hora de desapego y de cansancio (porque el reposo es eufemismo de derrota, y el sueño máscara de una nada metida en cada poro de la vida), la imagen apenas antropomórfica, desdeñosamente pintada por Picasso en un cuadro que fue de Apollinaire, figura más que nunca la comedia en su punto de fusión, cuando todo se inmoviliza antes de estallar en el acorde que resolverá la tensión insoportable. 
(Os prêmios).

Celine. 


Celine também se vale da imagem da máscara para descrever uma situação existencial, aqui uma citação do romance de Celine "Viagem ao fim da noite" onde se fala também sombre o tema.
"“É melhor não ficar se iludindo, as pessoas não tem para se dizer só falam das suas próprias dores as delas,  de cada uma, é claro. Cada um por si, a terra por todos. Tentam se livrar da sua dor, em cima do outro,  no momento do amor, mas aí não funciona e por mais que façam guardam- na inteirinha a sua dor, e recomeçam,  tentam mais uma vez dar-lhe um fim “ A senhorita é bonita “, dizem. E a vida recomeça, até a próxima  em que se tentara de novo o pequeno truque. : “ A senhorita é muito bonita”.
E depois desse meio tempo a se  gabarem de ter conseguido se livrar da sua dor, mas todos sabem muito bem não é mesmo que não é verdade de jeito nenhum  e que pura e simplesmente a guardamos inteira para nós.  Como vamos ficando cada vez mais feios e repugnantes  com essa brincadeira, ao envelhecer-nos não podemos sequer disfarçá-la, nossa dor,  nossa falência, e acabamos ficando com o rosto todo tomado por essa careta abominável. Que leva seus vinte anos, seus trinta anos e mais para afinal lhe subir de barriga ao rosto.  É para isso que serve, só para isso, um homem, uma careta, que leda uma vida para fabricar, e ainda assim nem sempre consegue concluí-la de tal forma ela é pesada e complicada a careta que teria de fazer para expressar toda a sua verdadeira alma sem nada perder.".


Brecht

Brecht dedicou um poema a como cansa a postura do mal



A Máscara Do Mal

Em minha parede há uma escultura de madeira japonesa
Máscara de um demônio mau, coberta de esmalte dourado.
Compreensivo observo
As veias dilatadas da fronte, indicando
Como é cansativo ser mal
Bertolt Brecht



A morte e a mascara de James Ensor.

Agora vou colocar duas imagems expressionistas, justamente que tem como tema A Mascara
James Ensor  (1860-1949)
Ensor pinta fantasmas, caricatos. A mascara se converte na expressão do ameaçador e desconhecido . O assombro da câmara de Wouse, A mascara e a morte. parecem criticar a sociedade com esta pintura ao  mostrar-la como algo grotesco. 
A presença da morte e de personagens cegos ajudam a criar um ambiente fantasmagórico.
Aqui citamos ao escritor americano Nathaniel Hawthorne sobre a máscara: “Ningún hombre, por un período considerable de tiempo, puede usar una cara para consigo mismo y otra para la multitud, sin finalmente confundirse respecto a cuál es la verdadera”.



Eugene O´Neill.   

          Jorge Luis Borges diz no prologo da edição argentina de três peças da obra de O'Neill que ele tinha se inquietado pelas máscaras e que as usou de modo que não tinham suspeitado os gregos nem o teatro Nõ.

O grande Deus Brown.

Eugene O´Neill escreve  esta peça de teatro e coloca em cada ator uma máscara com seu próprio rosto, com este recurso duplica de algum modo cada personagem trazendo um lado externo, epidérmico, social e outro próprio.
Os dois lados são reais e os dos representam a mesma pessoa, eles podem se fazer pelo outro se pegam e se colocam sua máscara.
A dupla Brown e Dion representam o americano bem sucedido economicamente e o talento e o submundo.


Os dois personagens femininos Margaret e Cybell (mulher e amante de Dion)  são o responsáveis de simbolizar aquilo que o poder não pode comprar.


A Electra lhe cai bem o luto.



A alegoria da máscara recorrente em  O´Neill ,se faz presente em vários sentidos, por um lado é como uma marca, o fato de pertencer a uma família, os rostos dos atores  e a fachada da mansão familiar tem a rigidez das máscaras: “Algo segredo...como se tivesse uma máscara, uma marca dos Mannon”.
Por outro lado a máscara ocupa o lugar de uma  copia: “Tem-se de imediato a estranha impressão de que em repouso, não é carne viva, senão uma pálida máscara que imita maravilhosamente a vida”...
Mais uma alegoria relacionada com a máscara: “A lua em quarto minguante projeta a luz sobre a casa, lhe dando tonalidades irreais, longínquas, imponentes. A brancura da fachada do templo se assemelha , mais do que nunca, uma incongruente máscara, fixada sobre a sombria mansão de pedra”.
A máscara também com sinônimo de semelhança do real e do representado: “Todos os rostos dos retratos tem a mesma tonalidade de máscaras que a dos personagens vivos do drama”.
Aqui descrevendo o cadáver de Ezra Mannon usa a imagem da máscara como uma imitação distante do verdadeiro: “Seu rosto de máscara é uma surpreendente reprodução do rosto do retrato; mas sombriamente longínquo e austero na morte, como o esculpido rosto de uma estatua”.
Aqui a máscara mais como uma duplicidade que oculta algo pior do que é visível: “Baixo a máscara do seu rosto há profundas rugas”.
Em fim em O´Neill  esta imagem desenvolve vários atributos e significados ampliando o conceito de máscara elevando seus simbolismo e suas possibilidades.


A máscara como sinônimo de hipocrisia.


No Tartufo de Moliere se descreve esta figura dramática como a personificação da falsidade.
Tartufo é um personagem histórico que se- valendo de recursos de sedução consegue tirar proveito e vantagens.
No primeiro ato o autor menciona a máscara para se referir a uma imagem que carrega o simbólico da mentira e do embuste.
“Queres fazer o mesmo honor a máscara que a verdade, igualar o artifício com a sinceridade, confundir a aparência com o real, apreciar o fantasma tanto como a pessoa e a falsa moeda igual que a boa?”
Em uma outra obra , do cinema mudo, o Mornau nos atualiza esta imagem da máscara como símbolo da falsidade.
No começo do filme do Mornau  “Tartufo”,de 1925,  o diretor coloca em cena a ideia da máscara associada com a hipocrisia, conceito que de algum modo define toda a perspectiva da obra.

A máscara no imaginário infantil .
Ben Shahn ( 1898 – 1969)





















A máscara no teatro Nõ

Em Oriente existe a tradição da máscara em varias direções, ligada a ritos, cerimonias, festas e ao teatro, as máscaras no teatro Nõ podem representar a mulher jovem, o homem velho, o demônio ...são sempre atores masculinos, normalmente só o personagem principal a usa. O sentido seria passar uma sensação de misterio e de neutralidade, Dominique Buisson acredita que seria possivel comprender o proprio espirito dos japonesses no seus rostos.
Duas curiosidades em determinada peça o ator só coloca a máscara no palco e frente a um espelho aguarda incorporar a personagem
A máscara da mulher sozinha é a mais carregada de significações:pode simbolizar a leveza , a sedução, a paixão ou o sofrimento.




Para quem queira se aprofundar no tema recomendamos a leitura de este artigo publicado no Blog
Aqui um filme poético onde se introduz a imagem dessa máscara
https://youtu.be/SnbYnGhvnNA


Joseph Conrad .


O autor, no livro "O coração das trevas" (Heart of Darkness),  ambientada na Africa de fins do século XIX utiliza a imagem da máscara quando se refere à paisagem de floresta fechada que o protagonista narrador atravessa: O clima do conto, ameaçador o tempo todo, inspirou o filme Apocalypse Now de Francis Ford Coppola, Aqui a frase:  "a floresta permanecia inamovível, como uma máscara pesada, Como a porta fechada de uma prisão".

No conto  The Rove ,"Com a corda no pescoço", a máscara aparece de novo, agora como imagem de algo que oculta outra realidade. Conrand descreve o mar como uma força brutal por trás de uma aparente calma: “Uma ligeira brisa bastava para arrancar do mar sua máscara serena”.

Edgar Bayley.

Aqui temos uma imagem linda : Uma máscara de madeira que anuncia um olhar profundo.

ES INFINITA ESTA RIQUEZA ABANDONADA
Edgar Bayley
Esta mano no es la mano ni la piel de tu alegría
al fondo de las calles encuentras siempre otro cielo
tras el cielo hay siempre otra hierba playas distintas
nunca terminará es infinita esta riqueza abandonada
nunca supongas que la espuma del alba se ha extinguido
después del rostro hay otro rostro
tras la marcha de tu amante hay otra marcha
tras el canto un nuevo roce se prolonga
y las madrugadas esconden abecedarios inauditos islas remotas
siempre será así
algunas veces tu sueño cree haberlo dicho todo
pero otro sueño se levanta y no es lo mismo
entonces tú vuelves a las manos al corazón de todos de cualquiera
no eres el mismo no son los mismos
otros saben la palabra tú la ignoras
otros saben olvidar los hechos innecesarios
y levantan su pulgar han olvidado
tú has de volver no importa tu fracaso
nunca terminará es infinita esta riqueza abandonada
y cada gesto cada forma de amor o de reproche
entre las últimas risas el dolor y los comienzos
encontrará el agrio viento y las estrellas vencidas
una máscara de abedul presagia la visión
has querido ver
en el fondo del día
lo has conseguido algunas veces
el río llega a los dioses
sube murmullos lejanos a la claridad del sol
amenazas
resplandor en frío
no esperas nada
sino la ruta del sol y de la pena
nunca terminará es infinita esta riqueza abandonada.