sábado, 26 de setembro de 2015

Viagem ao fim da noite

Celine

Viagem ao fim da noite

Existem laços, afinidades, canais de diálogo entre Celine, Henry Miller, Scott Fitzgerald, Roberto Arlt, Júlio Cortazar,Dostoievsky, Antón Chéjov e Paul Auster... Na literatura, fora as épocas, os países, existe uma semelhança que supera tudo, que transcende os movimentos, as escolas... Estou falando de uma preferência estética, de um o modo de pensar, de um modo de ver o mundo, de uma perspectiva e de um modo de escrever esse pensamento....Os  escritores citados tem um propósito claro: mergulhar  no estilo realista, (embora seja isto algo difícil de definir); estou falando de um tipo de estética que se propõe por um lado escrever como se fala coloquialmente e ao mesmo tempo, um estilo que tenta dizer as coisas com a maior sinceridade possível; o resultado, quando se trata de um pensador-poeta é muito bombástico.
Como proba de algumas afinidades do estilo me lembro de uma frase de Henry Miller falado sobre a beleza feminina quando ele afirma que existe uma “aristocracia das coxas” e depois encontro no Celine (seu mestre-inspirador) outra frase similar em consonância com esta ideia na parte do romance em que o protagonista se apaixonou pela Molly “A verdadeira aristocracia humana, digam o que disserem, são as pernas que a conferem, não tem talvez”.
Todos os escritores que citei têm um tipo de escrita que levam ao leitor a entrar em contato com uma autenticidade, a mostrar a vida de verdade, como ela transcorre de fato e assim nos aproximam a perceber quais seriam os olhares mais lúcidos sobre o que esta ocorrendo na nossa frente.
Na medida em que lemos nos deparamos com submundos arrepiantes com loucura, doença (similares aos do universo dos romances de Dostoiévski), ao transcorrer das paginas percebemos como na narração se alternam linhas descritivas do roteiro (o argumento em si) com chutes na bunda do mundo oficial (do senso mundano, dos valores, etc) e com traços sobre o que podemos chamar de viver no meio da lixeira da existência humana.
Na época do Cervantes os romances se dividiam em dois tipos, se considerava que existiam os relatos que eram considerados para entreter e os chamados didáticos (as fabulas, por exemplo, eram entendidos deste ultimo modo); Se tentássemos qualificar este livro do Celine a partir de esse principio perceberíamos que ele foge completamente desta dicotomia. Celine nos convida a colocar-nos na perspectiva  que podemos  chamar de uma ficção realista nua e crua ao mesmo tempo vemos que se trata de um tipo de literatura que acaba produzindo no leitor um olhar transformador sobre o que é o mundo, realmente e algo inspirador.

O Livro.

Começa como uma metralhadora atirando contra os franceses e contra todo o mundo.
Verdadeiros aforismos se alternam com uma descrição realista do momento duro e difícil que o protagonista esta atravessando: “É difícil chegar ao essencial, mesmo no que nos diz respeito à guerra, a fantasia resiste muito tempo. Os gatos ameaçados demais pelo fogo acabam mesmo é se jogando n’agua”.
Ou quando descreve ao povo Frances: “É mentira! A raça, o que você chama de raça, não passa dessa grande corja de fodidos de minha espécie, catarrentos, pulguentos, espezinhados, que vieram parar aqui perseguidos pela fome, pela peste, pelas doenças e pelo frio, os vencidos dos quatro cantos do mundo. Não podiam ir mais longe por causa do mar. A França é isso e os franceses são isso”.
Ou quando descreve a existência humana: “Quando não se tem imaginação morrer não é nada, quando se tem morrer é demais”.

O texto.

O relato conta suas penúrias do protagonista, Ferndinand Bardamu, um jovem estudante de medicina que se apresenta para combater na primeira guerra mundial, o romance narra o percurso que vai da experiência crua da guerra, mortes, dureza até o momento em que, por ter sofrido um ferimento em combate, retoma sua vida em Paris, na sua dura experiência na guerra conhece a seu amigo Robinson.
Em um hospital em Paris começa uma relação com a enfermeira Lola, uma americana com a qual se envolve amorosamente, Ferdinand (o protagonista) sofre uma alucinação persecutória no meio de um restaurante e é internado e uma clinica onde cuidam de pessoas com problemas mentais; desenvolve alguns recursos para sobreviver, para afastar o medo, aqui um dos relatos: “Quando somos fracos, o que dá força e despojar aos homens que mais tememos do prestígio que ainda tendemos a atribuir-lhes”.
Seu namoro com Lola fracassa quando ela percebe uma falta de heroísmo patriótico, Ela diz: “Mas Ferdinand é impossível recusar a guerra, só os loucos e cobardes que poderiam fazê-lo” ; ele lê responde : 'Então vivam os loucos e cobardes ou melhor , sobrevivam os loucos e covardes!!! “.
Celine ataca fortemente todo o establishment o chamando de covarde, de corrupto, falando  que o Poder só elogia ao homem comum quando esta prestes a usar-lo, quando o quer manipular.
O personagem finalmente recebe alguma liberdade e começa a freqüentar Paris, se apaixona por uma mulher de nome Musyne , decide morar junto com ela em um bairro no subúrbio de Paris.
Musyne o abandona e ele voltou a ser internado em um hospital para feridos de guerra.
O autor alterna fatos com pensamentos, em um deles nos comenta sobre as classes sociais- “Existem para os pobres neste mundo duas grandes maneiras de morrer , seja pela indiferença de seus semelhantes em tempos de paz, seja pela paixão homicida dos mesmos em tempos de guerra”.
Relata uma última aventura no hospital, um pedido de grana a familiares de pessoas que morreram na guerra; o clima é de falta de princípios éticos, de lei da selva, de desolação.
Da tranqüila vida no Hospital Celine descreve no seu romance como o protagonista passa por uma aventura aterrorizante, com a idéia de fugir da França e da guerra Ferndinand Bardamu, decide embarcar para África.
Resolve sair do país, então, se embarca em um navio até África, padece intimidações por parte da tripulação até o ponto de sofrer uma ameaça de morte, o clima esquenta, corre risco de vida; no final finge certa afinidade com os outros embarcados, disfarça, cria um discurso  patriótico para se salvar e consegue fugir de que o joguem ao mar.
Chega à África, consegue um trabalho em um lugar perdido no meio da selva, chega ao sitio depois de dias navegando, percebe que em aquele “fim do mundo” só o espera a morte, sua casa prende fogo, foge para uma cidade... Ríspido, duro com si mesmo e com o mundo, quase sempre hostil, às vezes se detém e repara a natureza como acontece nesta descrição de um por de sol na selva, aqui um dos seus relatos poéticos no meio daquela paisagem: “Uma imensa ostentação. Só que era uma muita admiração para um só homem. O céu se exibia todo salpicado de um lado a outro de escarlate em delírio, e depois o verde explodia no meio das  árvores e subia a terra em rastros trêmulos até as primeiras estrelas. Depois disso, o cinzento se apoderava de todo e em seguida o vermelho de novo, mais ai desbotado, o vermelho, e por pouco tempo. Todas as cores voltavam a cair, molambentas, deformadas sobre a floresta, como ouropéis  depois da centésima representação de um espetáculo.  Todo dia a seis em ponto que isso acontecia”.
Fica doente na sua estadia na África e é vendido como “escravo”, entra em um navio como remador, chega a New York, foge da tripulação... Se instala em um hotel espelunca, reencontra a Lola (agora instalada como madame em um bairro chic da cidade) acaba protagonizando uma cena grotesca compartilhando um chã com ela (sua ex-namorada) e suas amigas, acaba pedindo uma grana para se mandar de New York e se estabelece em Detroit.
Arruma um trabalho na Ford, acontece um fato engraçado, na entrevista para ser admitido ele confessa ao funcionário ter estudado medicina e o funcionário responde: “Não precisamos de imaginativos na nossa fabrica. É de chimpanzés que a gente precisa...”.
Seu trabalho dura pouco, nessa estadia em Detroit reencontra seu amigo Robinson, parceiro de outras aventuras e conhece a uma prostituta que acaba sendo uma das personagens femininas mais bonitas do romance: Molly. Celine comenta que ela era foi a primeira mulher que teve uma preocupação amorosa real para com ele,  para descrever ela comenta : “ Era sincera demais para dizer coisas de uma tristeza”.
O protagonista confessa sua natureza evasiva e lasciva, sua cupidez... ”acabei, por lhe confessar a mania que me atormentava de dar um fora de todo lugar”...”Eu tinha uma alma indecente como uma braguilha”.
Ferdinand volta para Paris, se gradua em medicina... Trabalha de forma independente em uma cidadezinha chamada Rancy, se reencontra com seu amigo Robinson.
Assiste pessoas doentes e acaba lidando com a dor e a impotência geradas pelo exercício da sua profissão; se depara com uma cena de violência no seu cotidiano que vai refletir no desenlace do livro: uma tentativa de homicídio envolvendo a nora de uma velinha, seu marido e o seu amigo Robinson contratado para assassinar a anciã (a velha mãe Henrouille), a tentativa fracassa e seu amigo Robinson acaba se ferindo.
Capítulos depois a nora consegue envenenar seu marido e se desfazer da velha e do Robinson enviando eles para se instalar nos fundos de uma igreja em Toulouse.
Aproveito para citar mais algumas da suas frases: “Viver na austeridade, que maluquice! A vida é uma sala de aula cujo bedel é o tédio, que aliás está ali o tempo todo a nos espiar, temos que dar a impressão de quem esta fazendo, custe o que custar, algo apaixonante, se não ele chega e devora o cérebro”.  
Aqui mais uma cita sobre seu pensamento: “É melhor não ficar se iludindo, as pessoas não têm para se dizer só falam das suas próprias dores as delas, de cada uma, é claro. Cada um por si, a terra por todos. Tentam se livrar da sua dor, em cima do outro, no momento do amor, mas aí não funciona e por mais que façam guardam- na inteirinha a sua dor, e recomeçam,  tentam mais uma vez dar-lhe um fim “ A senhorita é bonita “, dizem. E a vida recomeça, até a próxima  em que se tentara de novo o pequeno truque. : “ A senhorita é muito bonita”.
E depois desse meio tempo a se gabarem de ter conseguido se livrar da sua dor, mas todos sabem muito bem não é mesmo que não é verdade de jeito nenhum  e que pura e simplesmente a guardamos inteira para nós.  Como vamos ficando cada vez mais feios e repugnantes  com essa brincadeira, ao envelhecer-nos não podemos sequer disfarçá-la, nossa dor,  nossa falência, e acabamos ficando com o rosto todo tomado por essa careta abominável. Que leva seus vinte anos, seus trinta anos e mais para afinal lhe subir de barriga ao rosto. É para isso que serve, só para isso, um homem, uma careta, que leda uma vida para fabricar, e ainda assim nem sempre consegue concluí-la de tal forma ela é pesada e complicada a careta que teria de fazer para expressar toda a sua verdadeira alma sem nada perder”.

Final

O protagonista acaba assumindo a direção de uma clinica de repouso psiquiátrico, seu amigo Robinson termina assassinando a aquela anciã que tinha viajado com ele a Toulouse , estreita seu namoro com Madelon (filha e parceira no seu trabalho na igreja).
Robinson decide romper a relação e trabalhar com o Ferndinand, Madelon o procura, Ferdinand a expulsa do hospício de modo agressivo, para se reconciliar convida o casal para um passeio de fim de semana.
Ferndinand com sua namorada Sophie, uma enfermeira que também trabalhava na clinica e o casal de Robinson e Madelon saem em programa de reconciliação, o plano da errado.
Bate boca fatal no taxi de volta para casa onde participam os quatro: o protagonista, Ferndinand , seu amigo (Robinson) , sua namorada Madelon e a namorada do Ferdinand (Sophie).
Cena violentíssima que dura algumas paginas onde se cruzam acusações e xingamentos de uma violência verbal e psicológica poucas vezes vista na  historia de literatura.
O casal de amigos do Ferdinand briga e se acusa mutuamente, Madelon acaba puxando uma arma e dispara contra seu namorado, dentro do carro...os disparos produzem a morte do Robinson...Epilogo e fim...

Pensamento

Encontrei um texto de Schopenhauer que me parece em concordância com o se poderia extrair com pensamento de Celne:
" O Destino Mais Feliz — embora não seja o mais brilhante
Não há muito a se ganhar com o mundo; a miséria e a dor preenchem-no; se um homem escapar-lhes, o tédio estará à espreita em cada canto. Ademais, são a baixeza e a perversidade que governam o mundo, e a tolice predomina. O destino é cruel e a humanidade é desprezível. Em um mundo dessa natureza, o indivíduo rico em si mesmo é como uma habitação iluminada, quente e alegre em meio à neve e ao gelo de uma noite de dezembro. Por conseguinte, o destino mais afortunado nesta terra é, sem dúvida, possuir uma individualidade distinta e rica, e, particularmente, bons dotes intelectuais; esse é o destino mais feliz, embora talvez não seja, no fim, o mais brilhante;".
Conclusões

No prefacio da segunda edição o autor confessa arrependido de ter escrito porque o livro deu lugar a muitas acusações e interpretações errôneas e fala que se não fosse pela grana que o livro promete lê dar sumiria do mundo.
Viagem ao fim da noite é um livro que nos convida a olhar a realidade de um modo niilista e pessimista no sentido de mostrar uma decepção selvagem em relação ao que ocorre em volta, a ciência, os sentimentos  românticos, a piedade humana; tudo mostrado com um humor acido e muito cinismo sobre tudo quando fala da sociedade, das instituições e da vida em si. A metáfora que da o titulo ao livro “Viagem ao fim da Noite”, representa a viagem aos podres da alma humana, sua mesquinhez, a lei do mais forte, um livro intenso que mostra a condição humana na sua verdadeira baixeza, muitas pessoas acreditam que Celine seja apenas um ressentido, um fascista desalmado, mas a leitura deste livro mostra para quem quiser ter uma experiência forte , um mergulho profundo que o autor se encontra entre os maiores gênios do século XX.