quarta-feira, 26 de agosto de 2015

A fabulosa não historia de Tristram Shandy


Laurence Sterne

  A vida e as opiniões do cavalheiro Tristram Shandy publicada  entre 1760/  1767: 640 páginas no total, uma sátira, cheia de humor uma obra única de um dos artistas mais originais da historia.

O Estilo.

A primeira impressão que temos é a de um monologo interior sem conexão com um percurso linear, a narração é interrompida tudo o tempo por delírios ou divagações pessoais –Sterne insere textos, historias paralelas, reflexões filosóficas, sacadas humorísticas, sermões (ele era pastor)-não existe um argumento ao modo tradicional .
Uma erudição exacerbada e um jogo constante com o discurso “normal” do que entendemos por literatura nos colocam frente a um argumento que se apresenta como a falta de historia lineal.
Humorista nato introduz pensamentos irônicos sobre o tamanho do nariz, trocadilhos, insinuações... A idéia de que a literatura tenha uma ação, um percurso lineal, temporal e um fim não acontecem no livro... ao contrario temos um argumento onde as coisas não andam, a postura do autor aqui parece ser, justamente,  questionar essa perspectiva literária; o tempo, a ação não acontece, acontecem outras coisas paralelas , simultâneas como reflexões, historias  ou conversas que fazem que o tempo narrativo esteja parado.

O percurso ou o não percurso.

Assim com na vida real onde não existe uma coerência narrativa linear, os temas se superpõem no romance de Sterne e saltam de um a outro ora falando sobre uma ação, ora sobre a impressão que essa ação produz em um personagem, ora sobre as conseqüências dos fatos, lembranças..Joice e Cortazar duzentos anos depois tentariam produzir uma literatura onde também pudesse coexistir um mundo em movimento que não se encaixaria na narração literária passo a passo.

O leitor.

Como fica o leitor no meio de tudo isso? O que passa pela cabeça do leitor é uma expectativa sempre frustrada em relação com a realidade  que cria o autor , o leitor espera que possa ter continuidade mas o autor rompe constantemente com o horizonte de expectativas criadas por ele mesmo. Tristram Shandy cria as expectativas de uma novela comum; o resultado, ao contrario, é uma amalgama de consciência, inconsciência, associações, tudo com uma capacidade de imaginação formidável. O leitor espera que todos esses dados sejam retomados e recolhidos em um determinado momento dado, que eles respondam a uma finalidade concreta como acontece, por exemplo, no romance policial onde todos os elementos estão numa mesma direção.
O leitor ainda intenta -inconscientemente- compor e reconstruir o quebra-cabeças do Sterne, até perceber que a ação que se sucede na sua frente é o de menor importância, o que importa na realidade  é como ela se apresenta mais o que ela é.

O enredo.

Mais de 250 páginas, no começo, e o tempo narrativo parece parado no ponto que o protagonista vai nascer...ironias sobre a impossibilidade diálogo, elucubrações e sonhos , referencias literárias e míticas , disparates ,absurdos inimagináveis se sucedem  mais a narração não anda....como querendo se instalar em um outro tempo onde o que importa é outro percurso e já não a direção em frente mais um outro mundo que se abre.
Uma dissertação em forma de sermão sobre a consciência humana e uma reflexão sobre o tempo marcam na primeira parte da obra.
Deliberações sobre o nome da criança ocupam as páginas, um elogio sobre o descanso, o autor cita ao Cervantes: “Que as bênçãos de Deus, disse Sancho Pança, caiam sobre o homem que primeiro inventou esta coisa chamada sono-que cobre um homem inteiramente como um manto”.
Em determinado momento ele cita os parâmetros aristotélicos referidos a literatura para comparar com uma narração absurda inserida no romance onde um personagem, ele inventa um escritor chamado  Hafen Slawkenbergius que cria um conto onde um  individuo chega a um povoado montado em um burro e acaba sendo observado por algumas pessoas e sua nariz e colocada em suspeita por ser real o de madeira, o autor fictício brinca com as categorias literárias do Aristóteles: Epítase, Catástase...e coloca a sua narração absurda  como que estaria de acordo com as regras literárias do filosofo.
No meio de um romance louco que acontece dentro dessa historia absurda que ele inclui na narração, fora do humor o autor coloca este belíssimo poema
Ode
Soam fora do tom as notas do amor
Quando não é Julia a tocá-las
Em suas mãos a melodia
Logra infundir no coração tanta magia,
Que ao seu doce domínio os homens avassala
Oh Julia .
Em determinado momento o autor fala sobre a própria obra e comenta que passou dois capítulos para o personagem subir dois degraus e discuti com ele mesmo sobre se os homens devem seguir as regras ou as regras seguir aos homens....
No enredo nasce e morre um irmão do protagonista, o pai escreve um livro... Tudo dentro de uma narração sempre caótica, confusa... - O Sterne compara a o escritor com um militar-:  e fala “a vida de um escritor é um estado de composição como um estado de guerra,e suas provações  eram exatamente as de qualquer outro homem militar sobre a face da Terra- dependia tudo igualmente; muito menos do grau de seu INGENIO- que do grau de sua RESISTENCIA”.
O Romance tem outro romance dentro escrito pelo pai protagonista onde ele apresenta idéias mirabolantes sobre a temperatura do corpo humano ...ainda tem uma historia inteira contada dentro do romance aos modos da literatura “normal” , uma historia triste que fala sobre a vida do personagem Le Ferver , filho de um militar muito pobre que acaba sendo socorrido pelo pai do protagonista e acaba o contratando como tutor do protagonista.
O texto esta cheio de idéias poéticas, aqui vai uma muito bonita: "A Bela estatua continua encerrada no meio do bloco de mármore",
Laurence Sterne aqui falando sobre a criação, como se a obra já estivesse dentro da imaginação do artista mas ainda presa no seu lugar original ou como se dentro dos silêncios e dos sons já morassem as belas melodias.
Quase no final se introduz outra narração paralela que não se leva adiante chamada: “A historia do rei da Boêmia e seus sete castelos”.

Personagens.

Falando dos personagens do conto temos ao pai que dá o nome ao romance Shandy, o protagonista –narrador, a mãe (que não tem nome no livro inteiro), a parteira, o medico  (Dr Slop) , o irmão do pai (tio Toby), seu mordomo (Trim), no final a Sra Wadman e Bridge amantes deste dois últimos ...
Cada um deles tem seu momento na narração, no começo são os pais e no final o tio Toby e Trim junto com duas mulheres com as quais eles desenvolvem uma relação de sedução.
Tradução
Uma menção especial merece a edição em português  de José Paulo Paes onde existe um trabalho fabuloso de notas e especificações , mais de  450 verbetes esclarecendo idéias, imagens, nomes, lugares,  dificuldades para fazer a tradução como frases de duplo sentido  quase sempre de tom humorístico e de sarcasmo, citações de nomes  e de historias que mostram a grande erudição do autor.
Na página 366 aparece a palavra “goteira’ e o tradutor esclarece que alem do significado normal ela tem uma conotação sexual , servindo de sinônimo de jorro.
José Paulo Paes foi o responsável também da tradução de autores como Charles Dickens , Rilke, Joseph Conrad entre outros.

Humor.

 O livro incorpora o humor  e o sarcasmo como norte e tem tiradas geniais como a que comenta sobre uma espécie de Lei da Retaliação onde um dos personagens argumenta sobre a possibilidade de um neto querer namorar sua avo sob o pretexto de que o pai namorou a mãe dele.

Arte gráfica.
Mais uma vez queria me referir aos recursos estéticos do Sterne, neste caso os visuais, meia página com pontos, desenhos de mãos sinalizando, página inteira preta pensemos na época e vamos perceber o ousado da solução.

Obsessões.
Duas imagens perseguem o autor a do cavalo de pau e a do asno, a primeira como sinônimo da sua teimosia e a segunda como sinônimo do seu lado animal que ele tem que controlar.

A sexualidade.

As narrações sexuais abundam no texto, sejam de forma indireta ou sejam por descrições precisas e minuciosas .
Aqui um exemplo, o Tio Toby teve um romance com a Sra Wadman, na cena ela ajuda ele com uns curativos na perna: “Quanto mais ela esfregava , e mais demorados se tornavam os sues afagos –mais se ascendia o fogo na minhas veias- até que finalmente; em conseqüência de dois ou três afagos mais demorados que os anteriores- minha paixão chegou ao auge- eu lhe peguei a mão”.
A narrativa termina com a idéia fixa da viúva Wadman de tentar provar se seu possível futuro esposo , o tio Toby , tem uma ferida da virilha que o impedisse de ter um relacionamento conjugal com ela.

Final.

O livro não tem um final fechado nem aberto, não tem um fim nem o deixa sugerido de forma ambígua com idéias do tipo: Ele saiu pela porta e falou que voltaria, por exemplo.
Apenas termina com uma alusão ao touro como sinônimo da potencia sexual e o protagonista sai de cena em quanto assobia uma antiga melodia militar chamada Liliburlero.