Eu e a ditadura.
Do grupo “memória e oralidade” me convidaram para relatar
minha experiência de ter vivido baixo o regime militar argentino.
Vou
narrar os fatos em três etapas: a adolescência, quando servi no exercito e a
época da militância política.
CAPITULO I
A adolescência.
Quando tinha 15 anos, lá em 1972 estudava em uma escola
dirigida por padres salesianos da congregação de Dom Bosco.
Para ter-se uma idéia do clima: 30 % dos padres eram
pedófilos, 30 % gays, 30 % heterossexuais com uma vida “normal” e 10 % apenas
incorporavam o lugar do sacerdócio.
O ambiente era
ameaçador, no meio do pátio central tinha um monumento a um mártir seminarista
chamado Domingo Savio com a inscrição: “antes que pecar morrer”.
Tinha feito a primeira comunhão, meu mundo se dividia entre
o futebol, as festas sociais, a música e meu amor pela literatura.
A vocação literária me impulsionou para escrever artigos num
jornal produzido por alunos da escola.
Meu
universo de compreensão era muito estreito, completamente oficial e meu grado
de alienação político altamente grosseiro.
Vivíamos em uma ditadura presidida pelo general Roberto
Levingston.
Como ele tinha sido ex aluno de uma escola da congregação de
Dom Bosco e como a escola onde eu estudava estava festejando o 75 aniversário
da sua fundação (1897-1972) o presidente decidiu fazer uma visita na escola e
eu como aprendiz de jornalista acabei fazendo uma entrevista com ele.
Para minha mente ingênua aquilo era uma experiência
transcendente, era o deslumbramento de um garoto de subúrbio por ter tido
contato com uma celebridade; não tinha ninguém para me mostrar o tamanho da
aberração de tudo aquilo.
Não tinha distancia para ver como a igreja católica se
curvava ante a tirania, como meu lugar não passava de um comportamento
decadente.
Então minha primeira experiência inocente foi a de aceitar
aquela jerarquia desde o lugar do gado mudo e cego que não percebe a historia.
Aqui o link de uma música de Piazzolla para ouvir como
trilha...
CAPITULO II
Minha segunda experiência foi do lado de dentro do exercito.
Entre 1973 e 1976 Argentina teve um governo peronista e em
1976 se instaura a mais dura ditadura militar que resultara na desaparição de
30.000 pessoas.
Eu não tinha muita consciência política, era um jovem de 18
anos quando fui chamado a servir ao exercito.
Foram quase dois anos de humilhações e desrespeito onde
aprendi no dia a dia como se comportavam aqueles indivíduos uniformizados,
cheios de jerarquias, de soberba e solenidades.
Existia uma expressão na época dizendo que: “aos militares
se os sustenta na paz e se os defende na guerra”.
Eles são preguiçosos e com um nível muito baixo de
inteligência, queriam dar aulas de moral, de costumes com esquemas e clichês
dos mais simplórios que possa se imaginar.
E lembro que durante uma aula de “lavagem cerebral” eles
davam o seguinte exemplo: “vocês que preferem uma mulher de seu lar que te
receba em casa com a comida pronta, teus filhos brincando na frente de uma
lareira ou você acha melhor chegar em casa e encontrar só bagunça, tua mulher
bebendo ou fumando chegando de madrugada?”.
Eu entediado de ouvir tantas sandices um dia coloquei para
um deles a questão da liberdade, argumentei que nossas escolhas não eram tão
simples assim e que muitas vezes eram produto de um contexto cultural onde
estaria inserida nossa compreensão, falei especificamente do caso da Coca Cola;
como ela sendo objetivamente apenas um xarope marrom gasoso entrou nas nossas
escolhas como uma marca cheia de significantes, algo completamente cotidiano que
já não conseguiríamos mais separar a bebida de modo neutro de todas aquelas
imagens subliminares que assistíamos nos outdoors.
Aquela colocação deixou ao palestrante sem argumentos, me
fez pagar exercícios forçados e ganhei por um bom tempo o apelido de Coca Cola.
Fui acusado de comunista sem ser-lo naquela época e como
castigo me tiraram dos trabalhos administrativos que fazia para trabalhar na
seção junto aos pedreiros.
No ano seguinte foi o mundial de futebol onde a população
argentina atingiu seu grau mais alto de alienação e no final desse ano fiquei
livre da farda.
CAPITULO III
Em esta terceira parte narro como foi a minha experiência ao
fazer parte de um partido político (Partido Obrero) exercendo uma atividade
clandestina em plena ditadura.
Comecei a estudar Letras, freqüentar outro ambiente; já
tinha participado de algumas manifestações, tinha amigos que tiveram uma
experiência com Montoneros (grupo armado ligado à juventude peronista), mas eu
não tinha identificação com aqueles atos heróicos, no fundo precisava entender
primeiro.
Tinha alguns amigos que militavam em grupos trotskistas com
os quais me aproximava e que me ajudaram a tirar as primeiras arestas do que
seria compreender o mundo desde uma perspectiva marxista.
A ditadura era muito violenta ao ponto de seqüestrar uma
pessoa inocente apenas por que ela teria tido alguma atividade sindical.
Aconteceu isso, por exemplo, com o músico brasileiro Tenório
Jr. Ele estava numa turnê em Buenos Aires tocando com Vinicius, hospedado em um
hotel no centro da cidade , quando em determinado momento desce para comprar
cigarros, é abordado por policiais em uma blitz; ele mostra sua carteira da
“ordem dos músicos” e as forças de repressão interpretam que ele teria algum
envolvimento político sindical. Ele é levado a um centro de tortura e
assassinado dias depois.
Aqui um link com seu único álbum solista
Atividades.
Tentava formar um centro de estudantes na Universidade, eu era
delegado, os plenários onde se reuniam todos os ativistas chegavam a ter 80
pessoas.
Entre as atividades externas nos dedicávamos a organizar
mesas redondas ou fazer um recital de música onde teria sempre um orador com um
discurso de conteúdo.
Participei dessas atividades como músico, eu na época já era
profissional e também liderando marchas e reuniões. Lembro-me que em um ato a
policia se infiltrou e quiseram me interrogar por ter sido o orador, por sorte
consegui sair sem ser notado, trocando as roupas, me confundindo entre as
pessoas.
Uma das atividades artísticas extras partidárias foram “domingos
no parque”; os artistas começaram a se comunicar (na época nos bares por que
nem todos tinham telefone, não existia celular, whatssap, face book nem email).
Os artistas concordaram em ocupar o Parque Lezama (uma bela praça no bairro de
San Telmo, uma espécie de Montmartre ou Santa Teresa portenha).
Naquele momento ganhar os espaços públicos, as ruas e as
praças tinha um significado libertário.
Outra
manifestação importante foi o movimento que se criou em torno do que se chamou
“Teatro Aberto”; produtores, atores, diretores, autores e técnicos concordaram
em realizar um festival onde todas as peças fossem inéditas.
A ditadura infiltrou homens e colocou uma bomba no teatro
produzindo um incêndio que inviabilizou
a realização do evento. Mas para surpresa
dos militares o ciclo foi realizado com muito sucesso em outro teatro e alem
disso se multiplicou em outras áreas inspirando “dança aberta”, por exemplo.
Eu particularmente participei junto à bailarina e coreografa
Vivian Luz no festival “dança aberta” (ver foto).
Encontro com Trotsky
Eu já tinha uma predisposição natural pelo pensamento de
esquerda, mas o marxismo tem vários caminhos: não gostava do peronismo nem do
estalinismo.
Foi na convivência com algumas pessoas que admirava e na
leitura do Manifesto “por uma arte revolucionaria e independente” que Trotsky
escreve com Breton que me identifiquei com a ideia de um socialismo realmente
livre e acabei entrando no partido, na época chamado Política Obrera.
Mudança de nome.
Um dos mecanismos de segurança era não revelar nossos nomes
entre as pessoas do partido nem nosso domicilio.
Se tínhamos uma reunião em um apartamento citávamos as
pessoas em um café e o dono do apartamento passeava as pessoas, que tinham que
olhar o chão, as desorientando até entrar no lugar.
Eu paralelamente comecei a ter uma vida publica como músico
mais exposta assim que usei o codinome Roberto Andalgalá para me apresentar nos
shows.
Muita gente ainda me conhece por esse pseudônimo.
Riscos.
Apenas por ter cabelo longo e barba fui preso varias vezes, parado na rua, revistado etc.
Na
minha casa tinha um deposito de distribuição de panfletos e jornais que
convertia meu apartamento em uma bomba de tempo, no começo comprei uma corda e
amarrei tudo o material para jogar tudo pela janela mas em situações de alta
atividade política o material era tão grande que resolvi comprar uma corda
maior e em caso de invasão policial eu me jogaria do 10 andar até um terreiro
vazio que tinha na vizinhança.
Fim da ditadura.
O
ano 82 foi muito importante por que as lutas cresceram e o presidente Galtieri
invadiu as Malvinas e provocou uma guerra e em poucos meses a queda da
ditadura.
A
atividade política se tornou pública , fui desenvolver um frente na favela
“cidade oculta” onde passei a experiencia política mais importante; embora se
vivesse em uma democracia o aparelho de repressão não tinha desmontado eu sofri
ameaças telefonicas de morte, teve que mudar meu endereço; a burguesia queria
fechar o tema dos desaparecidos apenas com o argumento de “não se toca mais no
assunto”.
As
marchas pelos direitos humanos nas quais iamos na época da ditadura com medo
dos militares agora o risco era a truculencia da direita que queria ocultar o
tema.
Numa
das manifestações sofri uma agressão de parte do partido oficial (partido
radical); fiquei ferido na cabeça; accidente que custo 7 pontos e uma eterna
cicatriz.
O
tema dos desaparecidos nunca parou, de um lado quem lutava contra a barbarie e
do outro a burguesia dizendo: “vamos parar com resentimentos”.
Inclusive
com o fim da ditadura toda a estrutura repressiva continuo intata, na favela
era normal o sequestro e pressidio sob falsas acusações dos moradores, similar com o que acontece hoje nas favelas do
Rio como no caso de Amarildo e Rafael Fraga.
Relação
da ditadura com a educação e a cultura.
A
ditadura proibiu qualquer tipo de organização partidaria, sindical, centros de
estudantes e até qualquer reunião públiica.
A
censura proibiu a visualização das nadegas e do bico dos peitos femininos nos
filmes mesmo para maiores de 18 anos.
O
humor que se cultivaba na televisão e no cinema nacional era de tom machista e
com brincadeiras de duplo sentido.
Interessante
observar a diferença com Brasil por que em quanto na Argentina a censura era
de conteudo político e moral no Brasil a ditadura
alienava a arte com a porno chanchada.
No
territorio da educação a ditadura proiibiu falar de latinoamerica, vetou o
ensino da teoria dos conjuntos em matemáticas e censurou qualquer tipo de
livro, filme ou letra de música que levantasse questões reflesivas.
Presente.
Minha
luta continuo na Argentina no sindicato
de músicos e hoje tem sequencia no Brasil tentando ereguer as bandeiras do
partido obrero na sua versão brasileira chamada Tribuna Classista participando
das movilizações de 2013, de esta recente do 28/4 e do 1/5 e organizando
atividades como a da mesa redonda em torno do rema “ Arte e revolução”.